A questão do mal natural
Nivaldo Cordeiro | 20 Janeiro 2011
Artigos - Cultura
Agostinho afirma que, se até Daniel, o profeta, pediu perdão pelos seus pecados, que diremos nós, pecadores contumazes. Em última análise, o mal age para castigar os ímpios e para pôr os justos à prova e quando ele sobrevém atinge a todos indistintamente.
Quando acontecimentos catastróficos se sucedem ao observador sempre fica a pergunta: por quê? Não há dúvidas de que o Brasil e particularmente o Rio de Janeiro têm sido vítimas de males naturais que não são banais. Centenas de mortos em poucos dias é algo para nos remeter às questões teológicas centrais que tratam do mal. E do mal moral também: não faz muito tempo vimos que as forças da ordem agiram no Rio de Janeiro e centenas de homens armados de fuzis e outras armas típicas de guerras saíram à luz e à vista das câmaras de TV, mal vestidos e mal calçados, em desabalada carreira. São praticantes do mal cotidiano em larga escala. Pudemos ver os subterrâneos do mal moral transbordarem, fazendo fronteira direta com o mal político, pois ao Estado caberia coibir sua ação.
Digo isso a propósito do artigo publicado na Folha de São Paulo de ontem por João Pereira Coutinho ("A doença do crime"), no qual o talentoso jovem lusitano nos lembra a famosa frase de Voltaire, por ocasião do terremoto de Lisboa, em 1755: "Como pode Deus permitir a morte de centenas, milhares de inocentes?" A partir desse mote Voltaire e seus contemporâneos iluministas iniciaram ampla campanha para desacreditar a Igreja Católica e sua doutrina sobre o mal, fundada na obra de Santo Agostinho. Desde então se tem buscado explicação "natural" para todos os males e qualquer referência a Deus e à Providência tem sido ridicularizada pelos ateus e agnósticos como mera superstição.
Voltaire na verdade praticou um grande sofisma na sua exclamação e só tolos e desinformados poderiam embarcar na sua retórica. A frase referida é um primor de enganação. Veja-se que ela afirma uma antropologia que foi rejeitada pelo mundo cristão desde a origem, sobretudo depois de Santo Agostinho. Memorável o discurso do santo quando da Queda de Roma, no qual ele demonstrou que nada havia a lamentar e menos ainda a blasfemar contra Deus por causa daquele episódio. Veja-se que ao tempo os ainda fortes pagãos quiseram atribuir a tragédia romana ao abandono de seus deuses. Nesse texto esplêndido Agostinho mostrou que a cidade são as pessoas, não sua arquitetura, e que o homem, nascido na égide do pecado original, não pode alegar inocência diante de Deus. Se Alarico saqueou Roma esta fez por merecer e mais disse: que se houvesse um único justo em Roma tal fato não teria acontecido.
Reforçando a tese de que todos nós somos culpados diante de Deus Agostinho afirma que, se até Daniel, o profeta, pediu perdão pelos seus pecados, que diremos nós, pecadores contumazes. Em última análise, o mal age para castigar os ímpios e para pôr os justos à prova e quando ele sobrevém atinge a todos indistintamente. O raciocínio sobre Roma vale para o terremoto de Lisboa e para as Grandes Guerras. E para as tragédias cariocas também.
Agostinho estava convencido de que nada na história acontecia sem o conhecimento e sem a aprovação de Deus. O mal, nessa perspectiva, deriva da perversidade do homem, que abusa da dádiva do livre arbítrio. E também carrega consigo a mancha do pecado original. Esta tese é a verdadeira antropologia cristã e quer me parecer que é a expressão da verdade enquanto tal. O que Voltaire fez foi supor, como de resto todos os Iluministas, que o homem nasce "bom" e a sociedade é que o desencaminha. Vão além dessa tese, ao dizer que o homem pode ser aperfeiçoado moralmente, desde que direcionado para isso pela via do Estado. Daí a fé de que o sistema jurídico estatal pode criar o homem perfeito neste mundo. Desde então o esforço nessa direção tem sido total. Não deixa de ser irônico que o Jardim da Infância na estrutura escolar - o Kindengarten - tenha sido uma criação nazista mundialmente copiada, no suposto de que, tirando a criança da família biológica ainda cedo e entregando-a ao Estado, se estaria construindo um mundo melhor. Não demorou para que os criadores dessa monstruosidade inaugurarem os fornos crematórios.
Enfim, o mal natural é um dado da existência que só prova a fragilidade do homem e a única coisa sábia a fazer é aceitar os ensinamentos da tradição.
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