Os juristas portugueses e a Restauração
Mídia Sem Máscara
| 30 Novembro 2010
Artigos - Direito
Notáveis pensadores contemporâneos do Direito, como Paulo Merea e Cabral de Moncada, expõem com clareza que a tradição do pensamento jurídico em Portugal possui uma raiz assentada na limitação do poder pelo direito.
Chegou a minhas mãos a obra clássica de José Gomes B. Câmara, "Subsídios para a História do Direito Pátrio", em que o mesmo expõe com clareza e magnitude a História do Direito em Portugal, desde a fundação com o Reinado de Afonso Henriques até a ilustração, passando pelo movimento político da restauração. Mostra o autor que a literatura jurídica em Portugal, até o século XVI, era sistematizadora e tinha como pretensão redactar e compilar fontes legislativas, bem como canônicas, tanto do direito romano quanto das fontes do Reino, tudo isso com base na tradição da lei natural.
Assim, mostra o autor que a partir do século XVI, Portugal passa a presenciar o surgimento de juristas extraordinários, que se ocuparam de refletir a natureza da ciência jurídica em conexão com a teologia e a realidade concreta. São realistas do mundo das Leis, como diziam os antigos. Nesse diapasão, cita o autor alguns dos principais juristas do período, como por exemplo, Manuel da Costa, Pedro de Santarém, Antonio de Gouvêa, Álvaro Valasco e Francisco de Caldas Pereira e Castro. Passo agora a fazer um relato biográfico desses homens.
Manuel da Costa viveu no século XVI, estudou em Salamanca e fora aluno e discípulo de Martim de Azpilcueta Navarro. Foi ensaísta, civilista e tratadista, tendo escrito "Commentaria", tratado de leis civis publicado em Coimbra. Foi professor de Caldas Pereira, dentre outros. Podemos afirmar que Manuel da Costa foi um dos primeiros juristas tratadistas de Portugal, em período posterior aos legistas dos séculos anteriores.
Pedro de Santarém (Petrus Santernae) escreveu "Tractatvs de assecvrationibvs, nvnc lvce donatvs Petro Santerna Lvsitano Ivreconsulto Clarissimo avtore", obra em que demonstra a natureza dos contratos de Seguro. Na visão do mestre, Seguro é um "contrato de empréstimo sob condição". É conhecido também por seus discípulos e continuadores como um sistematizador do Direito Romano e das demais regras e leis canônicas sobre o tema do Seguro.
Álvaro Valasco (1526-1593) é jurista de escol, considerado, segundo Gomes Câmara, "uma das magnas expressões das letras jurídicas de Portugal durante o século XVI". Lente de Institutas na Universidade de Coimbra e advogado da Casa da Suplicação em Lisboa. Escreveu "Praxis Partitionvm inter Haeredes", "Quaestiones Iuris Emphyteutici", "Consultationum et Decisionum ac Rerum Iudicatarum". Autor sistemático, à moda dos canonistas do período, tomista, estudioso de Bártolo e compilador do Direito Civil.
Francisco de Caldas Pereira e Castro, de nascimento desconhecido e falecimento em 1597, mestre e jurisconsulto, fez seus estudos em Compostela e finalmente em Coimbra, destacou-se como notável filósofo do Direito, tendo estudado praticamente todos os filósofos gregos e juristas latinos do período republicano da história romana. Escreveu diversas obras, dentre as quais "Receptarvm Sententiarvm", "Quaestionvm Forensivm, et cotroversiarvm civilvm", além de compilações e comentários aos testamentos inoficiosos e decisões dos Imperadores Maximiano e Deocleciano. Além disso, foi também comentarista das ordenações manuelinas, de onde se deduz que Cldas Pereira foi também um juspublicista, o que representava, para os propósitos da época, alguém que se propunha a investigar as relações entre a lei natural e a origem do poder político. Assim, os vínculos existentes entre a justificação do poder monárquico em Portugal e sua dimensão jurídico-natural, mostrava-se tema bastante aprofundado a partir dos escritos de Caldas Pereira.
Também é mister observar a exponencial figura de Gabriel Pereira de Castro, filho de Caldas Pereira e, tal como o pai, estudioso da política. Escrevera "Decisiones Supremi Eminentissimique Senatus Portugaliae ex Gravissimorum Patrum Responsis Collectae, Noverteque impressae, et correctae legibus et auchoritatibus in gripfo positis", além de "Manu Regia", verdadeiros tratados de ciência jurídico-política. Percebe-se, a partir de Pereira de Castro, uma investidura dos juristas portugueses com relação aos temas do direito público propriamente dito, algo até então menos importante que os temas do direito civil e canônico.
Outro filho de Caldas figurou como grande jurista do final do século XVI e início do século XVII: Luis Pereira de Castro, deputado e desembargador dos agravos da Casa da Suplicação, foi licenciado em Direito Canônico. Escreveu "De Lege Mentali", além de ter participado no Congresso de Westphalia, em 1648, evento decisivo para a fundação dos Estados Modernos na Europa barroca.
Sem sombra de dúvida, tais autores foram precursores da ciência jurídica em Portugal, tendo preparado o caminho para o desenvolvimento das ciências canônicas, políticas e jurídicas que alcançariam estatura superior ao período da restauração, a partir de 1640, com a volta da dinastia lusitana ao trono, com D. João IV. Ora, os juristas da restauração, como Gouveia Velasco e outros encontrariam nos intelectuais citados as fontes necessárias para a formulação de uma teoria justificativa do poder sedimentada na tradição clássica, formulada tanto na teologia patrística e escolástica- com o Governo dos Príncipes de Santo Tomás de Aquino e também nas fontes dos concílios de Toledo e nas obras de São Isidoro de Sevilha- como também nas obras dos discípulos de Francisco de Vitória, uma vez que a influência da Escuela de Salamanca em Coimbra e no pensamento português era fortíssima.
Temos, assim, os primórdios de uma autêntica ciência jurídica portuguesa, de cunho tomista, fundamentando o momento mais decisivo da história de Portugal: a Restauração.
Os autores que fundamentaram a restauração e a tradição da aclamação dos reis de Portugal encontraram nesses juristas os fundamentos necessários para a formulação de uma teoria jurídica dos limites e das prerrogativas do poder do Rei, em sintonia com as Cortes dos três estados (casa da representação política da nação) e com os instrumentos jurídicos de defesa dos direitos dos particulares frente ao Rei, como o Agravo, por exemplo.
Assim, notáveis pensadores contemporâneos do Direito, como Paulo Merea e Cabral de Moncada, expõem com clareza que a tradição do pensamento jurídico em Portugal possui uma raiz assentada na limitação do poder pelo direito. Não por um direito construído por particulares, mas pelas próprias cadências do direito político em expansão, que se ia aumentando paralelamente ao movimento de expansão do poder.
A Monarquia portuguesa nunca foi exatamente um absolutismo régio como em França, mas uma Monarquia mediada pela representação por mandato, tipicamente medieval, em sintonia com a crescente força das Cortes, que nos dizeres de Antonio Manuel Hespanha, consistiu em ser o "último meio de defesa pactual e colectiva" dos direitos dos povos durante a passagem do antigo regime para a restauração.
Portanto, a tradição do direito em Portugal encontra raízes profundamente escolásticas, avessa ao chamado antigo regime absolutista de moldes franceses, já que seu principal atributo estava em conciliar a expansão do poder com sua limitação por meio do direito político, integrado pelas decisões das Cortes bem como pelos pactos e acordos realizados entre o Rei e àqueles que tinham assentos nas Cortes parlamentares. É certo que o patrimonialismo, a confusão entre a potestas dominativa e a potestas iurisdictionis, como se o poder político fosse um poder doméstico, foi também cultura fortíssima em Portugal. Apesar disso, a existência concreta de uma instância representativa de poder como foram as Cortes acarretava a diminuição do grau de intensidade dessa confusão, favorecendo a fiscalização das atividades reais pelas classes detentoras dos assentos.
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