Goethe e Dostoievski
Mídia Sem Máscara
| 01 Março 2011
Artigos - Cultura
No projeto Cultura Sem Limites, ciclo de cursos a ser ministrados a partir deste mês, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, dois dos cursos são altamente complementares entre si, por tratarem da mesma temática. O que eu mesmo vou ministrar no mês de maio, sobre o Fausto, de Goethe, e o curso do Professor Élcio Verçosa, que terá início no final de março, que trata da obra de Dostoievski,Os Irmãos Karamazov.
Ambos os autores tratam do tema do mal, mas de óticas muito distintas, mesmo opostas. Goethe é o poeta que cantou as representações simbólicas do mal em toda a sua amplitude e seu Fausto desenha um desfecho falsamente católico, que é a própria negação da ortodoxia católica.
Goethe é o cronista do nascimento do relativismo moral, dando-lhe uma base teológica que tem raiz no nominalismo. O tema da obra é mesmo cantar o microcosmo, o símbolo por excelência do mal, que perpassa a obra do princípio ao fim. É a estrela da manhã. Não ao acaso o poeta Paul Celan, que viveu os tormentos do século XX e era leitor atento de Goethe, iniciou seu poema Fuga da Morte com versos que não deixam dúvidas: "Leite negro da madrugada nós bebemo-lo ao anoitecer/Nós bebemo-lo ao meio-dia e de manhã nós/bebemo-lo à noite/Bebemos e bebemos"
O leite negro da madrugada é o símbolo máximo de Satã, que pairava nos campos de concentração, onde Celan foi confinado. No Fausto, o símbolo está no quarto gótico do intelectual entediado, no tempo em que ainda a arrogância moderna se escorava na lei da analogia gnóstica ("o que está em baixo é como o que está em cima") para cultuar o mal. Essa lei foi depois abandonada com a declaração da Morte de Deus, por Nietzsche, que inaugurará o século XX, de triste memória. Goethe leva tão longe seu canto ao símbolo satânico que fez Helena, personagem do Segundo Fausto, entrar em conúbio com o "Favorecido" e ter com ele um filho, Euforion, o filho da modernidade. Quem é Helena? É um símbolo que retrata Vênus, a máxima beleza. Helena é a mesma Vênus que é a estrela da manhã e a estrela vespertina, em outro lugar tão lindamente cantada por Samuel Beckett (Mal Visto, Mal Dito).
Dostoievski, especialmente no livro Os Irmãos Karamazov, discutiu também o mal, mas de uma perspectiva cristã. Aliás, dentro do cristianismo há duas correntes que entendem o mal de modo diverso: uma, na linha agostiniana, que teve em João Paulo II um seguidor, o vê como mera ausência do bem, numa visão que chamo intelectualista; outra, conforme os ensinamentos de Paulo VI, e dentro da tradição da letra dos Evangelhos, o vê como personificação ativa que age na história. A minha própria intuição é que o mal não apenas é personificado e age na história, como também aprende no processo histórico e, com isso, potencia sua própria maldade a cada momento. O tenebroso século XX é o reflexo desse aprendizado de milênios.
Se Goethe pressentiu a avassaladora presença do mal em seu tempo, dominando as Letras e a política, tendo aderido incondicionalmente ao signo dos tempos e inimizando-se com a Igreja Católica, o autor russo fez o caminho oposto: denunciou o mal, ergueu a tradição cristã como antídoto, mostrou que a bondade não pode ser derrotada pela maldade. Dostoievski foi um grande psicólogo. Ler ambos os autores em seqüência é uma dádiva pedagógica e uma oportunidade rara. Dostoievski é assim inimigo das novas religiões políticas nascidas com a modernidade e que têm servido para que o mal alcance sua plenitude de morte e destruição.
Quero sentar na primeira cadeira do curso do Professor Élcio Verçosa. Sei da sua competência. Será muito proveitoso.
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