O novo Enem: agitação e propaganda O novo Enem: agitação e propaganda
Mídia Sem Máscara
| 04 Agosto 2009
Artigos - Educação
Muito tem se falado sobre a educação como panacéia para as mazelas do Brasil, mas a educação só terá eficácia se não estiver engajada na causa revolucionária. Do contrário, ela só servirá para produzir e reproduzir "cidadãos críticos", cuja crítica se limita ao deslumbramento diante das palavras de ordem proferidas pelo Estado e seus arautos.
Depois de muito barulho sobre as modificações que pretendia fazer no Exame Nacional do Ensino Médio, com o objetivo de "democratizar as oportunidades de acesso às vagas federais de ensino superior", o Ministério da Educação divulgou ontem (30/07) um modelo das questões do novo exame. A divulgação dá mais um exemplo do modus operandi do governo Lulo-petista e, se fosse o caso de dar um título ao episódio, não seria necessário pensar demais. Basta recorrer ao "Muito barulho por nada", do velho e bom bardo de Stratford-Upon-Avon. O que há de novo nas questões do exame? Absolutamente nada - afirmação que se comprova com uma simples comparação entre as questões ora apresentadas e as questões dos anos anteriores. Para a produção disso - isto é, para a produção de coisa nenhuma -, diz o MEC que se aliaram "a capacidade técnica do Inep, no que diz respeito à tecnologia educacional para o desenvolvimento de exames" e "a excelência acadêmico-científica das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes)". Trata-se de uma mentira tão grandiosa quanto a retórica com que ela é vazada. Senão, vejamos.
Vou me limitar a análise do enunciado da primeira questão da prova da área de "Linguagens, Códigos e suas Tecnologias", que nada mais é do que a velha disciplina de comunicação e expressão. Vê-se nessa questão um dos problemas mais graves do estudo de ciências humanas no Brasil: o predomínio de um jargão supostamente científico que, nas questões do Enem, serve somente para confundir o estudante e afastar sua atenção daquilo que realmente deveria observar. Por outro lado, na vida acadêmica de um modo geral, essa linguagem rebuscada não passa de uma forma de disfarçar o caráter ideológico e a vacuidade epistemológica que a fundamenta. Mas vamos por partes.
Primeiro, o enunciado. A prova se abre com a transcrição - ex-abrupto - de um trecho da carta de uma leitora da revista Veja. A seguir, postula-se:
"Em uma sociedade letrada como a nossa, são construídos textos diversos para dar conta das necessidades cotidianas de comunicação. Assim, para utilizar-se de algum gênero textual, é preciso que conheçamos os seus elementos. A carta de leitor é um gênero textual que".
Vêm depois as cinco alternativas das quais uma deve apresentar as características do que o texto diz ser um exemplar do gênero "carta de leitor".
De imediato, me parece incorreto o uso do vocábulo "letrada" - cujo significado precípuo é "culta", "erudita" - para designar nossa sociedade. De fato, ela só poderia ser considerada assim se Paulo Coelho for tido por um literato modelo e a estética de "O Alquimista" suplantar a de "Os Lusíadas". Contudo, logo descubro que, especificamente em pedagogia, "letrado" significa "que ou aquele que é capaz de usar diferentes tipos de material escrito".
Não acredito que os estudantes do ensino médio tenham domínio do vocabulário da Pedagogia, mas passo ao próximo ponto, ainda na mesma frase desse enunciado, que, embora tão pomposa, quer dizer exclusivamente o seguinte: "Em nossa sociedade, as pessoas também se comunicam por escrito". Mas não é obra do acaso que isso não esteja dito em termos claros como os meus. Também não se trata de mau gosto e de incompetência estilística do redator da questão.
A expressão "em uma sociedade letrada como a nossa" carrega sub-repticiamente um julgamento de valor: deixa claro que existem outros modelos de sociedade e que a nossa é somente um deles. Relativiza-se com isso a posição de nossa sociedade "letrada" no conjunto (latente) das ordens sociais humanas (ela é uma entre as demais), o que lhe retira a superioridade, igualando-a às culturas ágrafas. Portanto, em vez de cumprir seu papel de mera locução adverbial, a frase advoga a perspectiva relativista do multiculturalismo contemporâneo. Estou exagerando?
Não acho, pois se trai na mesma frase outro elemento que, apesar de metafórico, não constitui um mero ornamento de estilo. Ao preterir o denotativo verbo "escrever" e empregar em seu lugar o "construir textos", o autor do enunciado reitera o engajamento de seu discurso, dessa vez com um suposto saber científico para o qual a metáfora da construção, aplicada ao redigir, tem um caráter analítico. Ou seja, com a expressão "construir textos" acredita-se estar elucidando, senão desmistificando, o ato de escrever. É nisso - numa construção - que o ato de escrever consiste.
Decorrem daí, provavelmente, pretensas semelhanças entre o trabalho intelectual e o braçal, que, no fundo, têm a mesma natureza: são trabalho, um elemento material da vida, ao que se opõe outro elemento (das kapital...), porém não é preciso ir tão longe. É evidente que a metáfora da construção não elucida em absolutamente nada o ato de escrever e que o fato de eu empregá-la não vai me fazer melhor redator por eventualmente ter tomado consciência do processo que se desempenha quando escrevo. Isso é somente a ficção pseudocientífica que subjaz à ambição do enunciador. Vamos encontrar novos indícios dela adiante, na segunda frase ("Assim, para utilizar-se de algum gênero textual..."), que é, por isso mesmo, ainda mais discutível.
Para começar, o "assim" - que parece utilizado no sentido de "consequentemente" - é por completo dispensável, pois não há relação de consequencia entre esta frase e a anterior ("Em nossa sociedade letrada..."). Segundo, a afirmação é falsa, pois qualquer pessoa pode se utilizar da linguagem (falada ou escrita) independentemente de conhecer linguística e gramática, ou mesmo quaisquer categorias ou preceitos dessas disciplinas. Não é necessário conhecer os conceitos de sujeito, predicado, adjunto adnominal, etc. para se falar ou escrever qualquer bobagem, pois não?
Mas o breve enunciado da questão se encerra com a asserção "A carta de leitor é um gênero textual que", a ser completada por uma das afirmativas abaixo dela. Trata-se de uma asserção mal formulada, de uma asserção sem nenhum asserto, nem acerto, pois o que pode ser chamado de gênero textual é a carta de um modo geral, e não a carta de leitor. A carta, em termos amplos, constitui um espécime do chamado gênero epistolar. Carta de leitor não chega a ser gênero, mas, com muita boa vontade, uma variedade ou subgênero do gênero epistolar.
Parece desnecessário seguir adiante e averiguar as verdadeiras pérolas do escolasticismo semiótico que perfazem as possibilidades de resposta a uma questão tão mal formulada. O que se falou aqui é suficiente para concluir que, com os estudantes gastando seu tempo na escola a digerir conteúdos de tão "elevada profundidade", não é de espantar que eles já não sejam profícuos na velha e boa arte de escrever cartas. Mais: que raio de "capacidade técnica" e "excelência acadêmico-científica" é essa, que se traduz numa questão repleta de ideologia e imbecil sob o ponto de vista do conhecimento?
Muito tem se falado sobre a educação como panacéia para as mazelas do Brasil, mas a educação só terá eficácia se não estiver engajada na causa revolucionária. Do contrário, ela só servirá para produzir e reproduzir "cidadãos críticos", cuja crítica se limita ao deslumbramento diante das palavras de ordem proferidas pelo Estado e seus arautos. Creio que a melhor maneira de dar combate a esse tipo de educação é revelar a imbecilidade que lhe é intrínseca e que se esconde atrás de uma linguagem obscura, pretensiosa e pseudocientífica.
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