Subsídios para entender o Islam (e as bases de sua diplomacia) II
Mídia Sem Máscara
| 01 Julho 2010
Artigos - Religião
Enquanto os diplomatas ocidentais se orientam por 'poderes estatais, militares, econômicos e burocráticos', os muçulmanos regulam suas discussões pela 'unidade profunda do projeto islâmico'.
A visão islâmica do mundo
Ummah
Ummah é a palavra árabe que significa comunidade ou nação, comumente usada no contexto islâmico para indicar a 'comunidade dos crentes': ummat al-mu'minin, todo o mundo muçulmano incluindo a diáspora. O Corão usa Ummah Wahida para se referir ao mundo islâmico unificado.
A Sura 3:110 diz:
'Vocês (os crentes) constituem a melhor nação criada para (o benefício do) o homem, vocês impõem o certo e proíbem o errado e acreditam em Allah; e se os seguidores do Livro ([i]) tivessem (também) acreditado teria sido melhor para eles; entre eles (alguns) são crentes, mas a maioria são transgressores'.
Ummah, no entanto é freqüentemente usada para o mundo inteiro já prevendo o futuro Império Islâmico Mundial ou Grande Califado (khallifah: representante do Profeta, soberano temporal e espiritual dos muçulmanos). É de suma importância para entender a diplomacia islâmica para a qual, diferentemente do Ocidente, as divisões do mundo não são vistas pelos dirigentes, e mesmo pelos crentes comuns, como regiões geográficas, mas sim regiões a conquistar para o Islam e que se por ora não fazem parte da Ummah, ainda o farão. Estas divisões não constam do Corão nem dos haddithim, foram introduzidas por sábios muçulmanos com base nestes documentos. Note-se que as regiões são divididas em termos de religião e não são baseadas em divisões políticas ou geográficas. A primeira divisão foi proposta pelo Grande Iman Abū Ḥanīfa (699-767), fundador da Escola Hanafi de Jurisprudência (sunita).
Regiões do mundo segundo o Islam
Dar AL-Islam
(Casa ([ii]) do Islam.) São as que obedecem às leis corânicas e nas quais a religião pode ser praticada livremente. Dois requisitos são fundamentais: os fiéis devem gozar de paz e segurança em seus domínios e ter fronteiras comuns com outros países islâmicos. Também chamada de Dar AL-Salam, casa da paz (Corão 10:25).
Dar AL-Harb
(Terra da Guerra ou Dar AL-Garb, Terra do Ocidente) Onde a lei islâmica não é obrigatória, mas respeitada, junto com as demais religiões. Regiões a conquistar através da jihad (ver adiante).
Dar AL-Kufr
(Casa ou Domínios dos infiéis). Primeiramente usado por Maomé para se referir à comunidade Coraixita de Meca até seu retorno triunfal de Medina e reconquista. Geralmente são territórios visados para dominação, também chamados Dar AL-Harb (acima) e seus habitantes harbs.
Nas relações internacionais ainda são consideradas quatro outras divisões:
Dar AL-Hudna
(Domínio da trégua temporária) Terra de infiéis (harbs) com os quais o Islam estabeleceu um armistício mediante pagamento de um tributo. (Para melhor entendimento de Hudna ver item específico adiante).
Dar AL-'Ahd
(Terra da trégua ou armistício) Países com os quais existe algum acordo ou armistício não dependente de tributos.
Dar AL-Dawa
(Casa dos convidados) Regiões nas quais o Islam foi introduzido recentemente, - onde o Islam não domina e os muçulmanos são minoria, mas são bem recebidos. Também define o status dos muçulmanos no Ocidente.
Dar AL-Amn
(Casa segura) Define o status dos muçulmanos em algumas regiões do Ocidente ou outros países não-islâmicos. Por exemplo, do Oriente.
Nunca é demais enfatizar que, enquanto os diplomatas ocidentais se orientam por 'poderes estatais, militares, econômicos e burocráticos', os muçulmanos regulam suas discussões pela 'unidade profunda do projeto islâmico', dominada pela idéia religiosa. Sentem-se mensageiros de Allah, e não políticos, estes últimos irrelevantes no projeto de longo prazo, e sentem-se protegidos e autorizados a utilizar todos os estratagemas em nome de Allah, como reza na Sura
'Certamente protegeremos Nossos mensageiros e àqueles que crêem na vida deste mundo e no dia em que as testemunhas se levantarão'
A visão islâmica de mundo é claramente expansionista. Enquanto os tratados negociados entre os países ocidentais entre si ou com o Islam são respeitados pelos primeiros como válidos em si mesmos, os negociadores islâmicos visam respeitá-los apenas como exigências temporárias. Sendo sua visão muito mais abrangente e caracterizada por uma crença missionária expansionista - isto é, a conquista do mundo todo para a submissão (islam) - não há pressa e nem sacrifício inaceitável, inclusive a própria vida. Segundo o Sheikh Yousef al-Qaradawi ([iii]), mujtahid (prestigiado estudioso de teologia islâmica) e líder espiritual da Irmandade Muçulmana, as divisões acima também orientam os fiéis a como se conduzir com relação aos não-muçulmanos em cada uma delas. Veremos a seguir a primeira.
O Conceito de dhimmi
Dhimmi ('protegido') é o status de minorias não-islâmicas vivendo na Ummah (Dar AL-Islam), submetidas à shari'a e pagando impostos elevados. Originalmente foi usado para os Povos do Livro (Judeus e Cristãos) conquistados. Um precedente clássico foi o acordo feito entre Maomé e os Judeus de Khaybar, um oásis perto de Medina. Quando eles se renderam, depois de prolongado cerco, o Profeta permitiu que eles permanecessem desde que pagassem como tributo a metade de sua produção anual. A justificativa corânica está em:
9:29:
'Combatam aqueles que não acreditam em Allah, nem no Dia do Juízo, nem proíbem o que Allah e seu Mensageiro proibiram, nem seguem a religião da verdade, mesmo que eles sejam Povos do Livro, até que eles paguem a Jizya (imposto por cabeça) em reconhecimento da superioridade (do Islam), e se submetam'.
A Constituição de Medina, um acordo formalizado entre Maomé e as tribos e famílias de Medina declarava que os dhimmi vivendo na Ummah tinham os seguintes direitos e deveres:
1- Direito à proteção de Allah;
2 - Direitos políticos e culturais iguais, autonomia e liberdade religiosa;
3 - Dever de tomar em armas para combater os inimigos da Ummah e dividir os custos da guerra;
4 - Dever de entrar nas guerras religiosas dos muçulmanos;
Com a evolução das noções jurídicas estes direitos foram se restringindo e os deveres aumentando. Diversas matanças de dhimmi foram perpetradas, principalmente no Al Andaluz. Quanto à religião, no entanto, apenas o Islam é a verdadeira aos olhos de Deus e Ele não aceitará nenhuma outra, pois:
'Se alguém deseja uma religião que não seja a submissão (Islam) a Allah, Ele nunca a aceitará e para o futuro (esta pessoa) perderá todas as benesses espirituais'
Portanto, o Islam não permite a construção de igrejas ou templos que não sejam dedicados à submissão a Allah, pois como poderiam aceitar se estas religiões estão, por princípio, erradas? A condição de dhimmi não impede que as autoridades religiosas façam o possível para convertê-los à submissão, pois:
Digam àqueles descrentes que, se eles desistirem, o que foi de seu passado será perdoado
Lutem contra eles até que não haja mais perseguição e a submissão a Allah for a única religião se eles desistirem, certamente Allah estará vendo
A situação dos dhimmi e sua obrigatória submissão à shari'a no que toca aos aspectos principais da vida, inclusive as dificuldades de culto de suas próprias religiões, embora teoricamente livres, exige um exame anterior da shari'a. A situação dos infiéis vivendo nas outras regiões será estudada da seção posterior dedicada à jihad.
Shari'a
Shari'a pode ser traduzida por caminho ou senda. É a lei, derivada do Corão e da Sunnah, acrescentada de precedentes das práticas de reconhecidos Ulemás, doutores em lei canônica e teologia, que comanda todos os aspectos da vida dos muçulmanos: a rotina diária, as obrigações religiosas e familiares (incluindo conjugais), acordos financeiros e diplomáticos etc. Por esta razão, os diplomatas ocidentais designados para discutir com países islâmicos, deveriam esquecer todas as regras, costumes e noções políticas que estudaram e se aprofundar no estudo da shari'a.
Deve-se salientar que as 'práticas de reconhecidos Ulemás' parece, mas não tem nenhuma relação com o que chamamos no Ocidente de jurisprudência, pois não são julgamentos ou sentenças apenas, mas incluem exemplos de vida e conduta. Muitas vezes o consenso da comunidade a respeito de alguma conduta é incorporado à lei. A jurisprudência islâmica é a Fiqh, constituída pelas decisões dos acadêmicos. Há quatro escolas sunitas ou maddhab da fiqh, todas nomeadas a partir de um jurista clássico que não sabia que as suas decisões iriam ser imitadas (o conceito de taqlid, "imitação cega", surgiu mais tarde). As escolas Sunitas são a Shafi'i (Malásia), Hanafi (subcontinente indiano, África ocidental, Egito), Maliki (África ocidental e do norte), e Hanbali, a mais ortodoxa (Arábia Saudita - sunitas wahabittas e, no Afeganistão, pelos Talibãs). A maddhab xi'ita é a Ja'fari. No entanto, cada fiel em sua vida particular pode, teoricamente ao menos, aderir a qualquer uma delas, mesmo que não a predominante na sua região.
Existem categorias de ofensas e gradação das punições. As cinco ofensas prescritas no Corão, hadd, têm punições fixas e não podem ser mudadas por autoridades ou juízes. São elas: 1- adultério, 2- falsa acusação de adultério, 3- uso de bebidas alcoólicas, 4- roubo e 5- assalto às caravanas. Aquelas, ta'zir, cujas punições são deliberadas por um juiz as decididas pela Lei de Talião (olho por olho, dente por dente), jinayat, por exemplo: crimes de sangue devem ser pagos com sangue. Existem ainda as que envolvem penalidades administrativas (siyasa), geralmente por ofensas contra a política oficial e aquelas que podem ser corrigidas por atos de penitência pessoal (kaffara). ([iv])
A maioria dos países islâmicos com governo secular possui atualmente um sistema dual, no qual o povo pode levar suas disputas familiares e financeiras às cortes shari'a, enquanto no demais respeitam as leis seculares do país nas chamadas cortes adlia. O Qatar é um exemplo da dualidade oficial. Alguns países ocidentais estão explorando a idéia de adotar esta dualidade em relação a cidadãos que professam o Islam, com graves ameaças à sua estabilidade e à paz interna. O Arcebispo de Canterbury, Roman Williams, baseado na não separação entre Igreja e Estado que vigora no Reino Unido, propôs há dois anos a adoção de cortes eclesiásticas especiais para Muçulmanos e Judeus Ortodoxos.
No entanto, retornando à situação dos dhimmi, a dualidade da lei nem sempre representou uma vantagem para os mesmos. Durante o Império Otomano, criado por séculos de jihad contra as populações Cristãs, pintado freqüentemente como um modelo de império multi-étnico e multi-religioso, os dhimmi nas regiões balcânicas estavam submetidos às mesmas regras prevalentes nos antigos reinos islâmicos, inclusive com obrigatoriedade de se vestirem de forma diferenciada da dos muçulmanos para ficar evidente seu status inferior, como manda a sura 9:29 acima citada.
Bat Ye'or, escreveu uma série de estudos sobre a situação dos dhimmi, inclusive o livro The Decline of Eastern Christianity Under Islam: From Jihad to Dhimmitude : Seventh-Twentieth Century, e cunhou o termo dhimmitude para expressar esta condição.
Jihad
Hadith do Profeta Maomé:
"Eu recebi a ordem de lutar contra os povos até que eles testemunhem o fato de que não há outro Deus senão Allah e acreditem que eu sou o Mensageiro (do Senhor), e em tudo o que eu disser. Quando eles afinal se submeterem [islam], seu sangue e sua riqueza serão protegidos".
Esta é a essência da Jihad (guerra santa), o esforço compulsório dos fiéis em expandir o território islâmico às expensas de territórios não-islâmicos. Tem sido um aspecto central da vida dos muçulmanos desde 624. A primeira fase, que abrange o século VII incluindoas atividades bélicas do próprio Maomé depois da hijra (fuga para Medina) foi seguida pela segunda, chamada de teológica, teórica e legal, iniciada após a morte do Profeta e inclui a expansão do Islam pela Península Arábica, Ásia e Mediterrâneo. Foi então que os jurisconsultos elaboraram o conceito teológico de jihad baseados nos atos e palavras de Maomé (os já estudados haddithim).
Ibn Khaldun nos diz que existem quatro tipos de guerra (op.cit., p. 224): 1- causada por ciúme ou inveja entre tribos vizinhas ou famílias concorrentes 2- causada por hostilidade, usualmente ocorre entre nações selvagens com o intuito de privar o inimigo de seus bens e/ou do usufruto dos mesmos 3- aquelas que a lei religiosa chama de 'guerra santa' e 4- guerras dinásticas contra dissidentes ou que recusam obediência. As duas primeiras são guerras injustas, as duas últimas são guerras justas.
Para alguns a jihad seria o sexto Pilar do Islam. Os cinco reconhecidos pelos sunitas são: a profissão de fé no único Deus e seu Profeta (Shahadah), as orações cinco vezes ao dia (Salat) (para uma descrição das preces ver Abdalati, op.cit, cap III), o jejum (Sawm) nos dias prescritos principalmente no mês de Ramadan, a caridade, doação de bens (Zakat) e a peregrinação a Meca (Hajj) ao menos uma vez na vida. Para os xi'itas são mais abstratos e voltados para o interior do indivíduo: a crença no Deus único, no Dia do Juízo Final, a crença nos Profetas Islâmicos, Judeus e em Jesus, na liderança dos Doze Imans ([v]) e na Justiça. As expressões externas da religiosidade, embora cruciais, não são consideradas como Pilares pelos últimos. A Shahadah inclui a crença em todos os Profetas citado no Corão (são 25), pois sua mensagem 'é basicamente a mesma e é chamada submissão (islam), porque veio da Única e Mesma Fonte, Deus, e serve para o mesmo propósito: guiar a humanidade no Caminho Correto de Deus' (Abdalati, op.cit.). Mesmo não sendo um dos pilares, a jihad é uma obrigação corânica para todos os fiéis. O site do Iman Hasan-al-Bana tem uma excelente compilação.
De acordo com a teoria da jihad os habitantes da terra da guerra (dar al-harb) são infiéis a serem combatidos porque se opõem ao estabelecimento da lei islâmica em seus países. Como inimigos de Allah eles não têm direitos: eles podem ser tomados como escravos, seqüestrados, roubados ou mortos e a tomada de suas propriedades pelos muçulmanos é lícita (mubah). Se eles resistirem à jihad podem ser deportados.
Os infiéis residentes na terra do armistício (dar al-hudna) são respeitados entre as guerras. Em princípio o armistício não deve ultrapassar dez anos, quando então a jihad será reiniciada (ver mais detalhes na seção sobre a hudna).
O Sheik Mohamed Sayed Tantawi, ex-Grande Imã da mesquita egípcia de Al Azhar, a instituição religiosa mais prestigiada do Islam sunita, procurou esclarecer que "há uma grande diferença entre o terrorismo e a "Jihad". 'A Jihad na religião islâmica significa que o muçulmano defenda sua fé, seu país com seus bens e integridade territorial. Se o inimigo invadir um país muçulmano, a guerra santa contra ele é um dever', afirmou o clérigo ao jornal árabe "Asharq Al Awsat". Porém, isto não significa que o terrorismo não seja um de seus métodos, cada vez mais empregado na atualidade.
(A seguir: Hudna, Taquiyya, Tariqas.)
Notas:
[i] Referência à Bíblia e seus seguidores anteriores ao Islam: Judeus e Cristãos.
[ii] Encontrei diversas traduções da palavra árabe dar para o inglês: casa, região, terra, domínio, território, etc. Cada autor faz a sua tradução. Usei de acordo com o que me pareceu mais adequado.
[iii]Citado em Jews and Christians under Islam, de Bat Ye'or. Informações sobre o Sheik podem ser encontradas em Islam Online e declarações mais recentes em The Global Muslim Brotherhood Daily Report.
[iv] Para os interessados em conhecer mais a fundo: Islam: Governing under Sharia, Comparative Criminal Law and Enforcement: Islam - Hadd Offenses, False Accusation Of Unlawful Intercourse (kadhf), Drinking Of Wine (shurb), Theft (sariqa) Comparative Criminal Law and Enforcement: Islam. Para uma comparação com a lei anglicana, ver Why Shariah?
[v] Para os xi'itas, os sucessores de Ali, genro de Maomé, marido de sua filha Fátima (por isto uma das dinastias xi'ita foi a dos Fatímidas). O 12º Iman, ou o Iman Oculto, ou o Iman a chegar, Muhammad al-Mahdi, encontra-se escondido e regressará no fim do mundo. O Imã oculto é capaz de enviar mensagens aos fiéis. Alguns acreditam que o falecido Aiatolá Khomeini teria recebido inspiração do 12º Imã. Para os sunitas os Imãs são apenas sábios. Os Sunitas Wahhabitas, majoritários na Arábia Saudita, consideram os xi'itas como apóstatas (desertores) do Islam.
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