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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Os liberais e o desentendimento disfarçado de debate

Mídia Sem Máscara

Os conservadores são céticos em relação à reformas e esquemas utópicos que, ao contrário do que prometem, não só ampliam a força e o papel do poder central e de grupos ideológicos, como conduzem ao caos e à infelicidade pelo ataque aos diferentes modos de vida e de ação individual.

No texto A arrogância fatal dos estúpidos liberais, afirmei que o que se desenvolvia na esfera pública através dos meios de comunicação e da internet (blogs e redes sociais) não era debate, mas diferentes modos de entendimento ou desentendimento. Dizia eu que era tecnicamente equivocado chamar de debate conversas livres onde imperava a ausência de rigor teórico, de pressupostos e fundamentos mínimos que apresentasse proposições estruturadas de forma a esclarecer os pontos defendidos e permitisse uma contraposição esclarecida.

Falar de liberalismo, libertarianismo, conservadorismo, esquerda, direita etc. sem definir os conceitos com que se está a trabalhar permite um desentendimento puro, no qual as discordâncias são superficiais, não substanciais, porque cada um dos interlocutores trabalha com opiniões, muitas vezes sem fundamento teórico, sem apresentá-las devidamente partindo do pressuposto de que o outro sabe exatamente as categorias colocadas em conversação. Assim, as reações às supostas proposições são feitas por aquilo que o interlocutor acha que foi dito e não precisamente por aquilo que foi apresentado. Nesses casos, a confusão é a verdadeira alma do desentendimento.

Socialistas e comunistas, por estratégia, sempre utilizam de forma eficiente a confusão e a sobreposição de temas num desentendimento de forma a desarticular os argumentos do oponente. Se você admite entrar nesse jogo se verá logo envolto por um turbilhão de salitre e breu, para usar uma imagem do poeta inglês William Blake.

A coisa toma uma dimensão, digamos, excêntrica quando aqueles que normalmente mais reclamam da ignorância alheia repetem os equívocos daqueles a quem criticam. Quando liberais criticam, por exemplo, o conservadorismo se eximem de explicar de qual conservadorismo estão a falar (dirijo-me aos liberais porque são o leitor médio deste site, mas a advertência vale para todos). Dependendo de quem escreve e do tema tratado, podemos fazer uma dedução, que está longe de ser rigorosa. Mas na maior parte das vezes fica impossível identificar num texto que fala da política dos Estados Unidos e do Brasil qual uso se faz do termo conservador, que é completamente diferente em cada país.

Em Terras de Vera Cruz, o vulgo, em completa ignorância histórica, chama as oligarquias e coronéis da política brasileira de conservadores, mesmo que aqueles empreendam mudanças sistemáticas nas leis e na burocracia administrativa para aumentar-lhes os privilégios e beneficiar os apadrinhados. Dizer apenas que eles o fazem para conservar o próprio poder e as benesses advindas deste é tentar converter o verbo numa categoria política (e não estou aqui afirmando que representantes das oligarquias e do coronelismo não estavam no Partido Conservador do nosso Período Imperial ou que a agremiação política era impoluta e plenamente admirável). Além do mais, desconhecem que houve no Brasil políticos e intelectuais alinhados com o conservadorismo britânico, como Joaquim Nabuco. A ignorância, convém destacar, está na historiografia dominante. Talvez o melhor livro que tem como objeto de investigação o Partido Conservador seja The Party of Order: the Conservatives, the State, and Slavery in the Brazilian Monarchy, do professor Jeffrey D. Needell.

Além disso, o conservadorismo britânico não é igual ao conservadorismo europeu continental que não é igual ao conservadorismo americano. O pensamento do conservador Edmund Burke não deve ser confundido com o pensamento do conservador espanhol Juan Donoso Cortés que não deve ser confundido com o pensamento do conservador francês Joseph de Maistre que não deve ser confundido com o pensamento do conservador americano Russel Kirk, que está mais próximo de Burke (tais especificidades e diferenças ficarão para um próximo texto).

Obviamente, há entre eles muitos pontos substantivos de intersecção e fundamentos compartilhados, como a defesa de certos valores tradicionais do passado, como as verdades perenes e atemporais da Civilização Ocidental, desde a Filosofia e o Direito da Grécia e de Roma, ao Cristianismo, à Literatura etc., que representam o que de melhor se produziu e que deve ser transmitido aos jovens com o objetivo de preservar uma sociedade civilizada, decente, ordeira, saudável, além da descrença numa natureza humana originariamente boa, nobre e perfeita, mas falível, pecaminosa, rebelde e egoísta.

Embora sustentem a importância da autoridade e da ordem, os conservadores são céticos em relação à reformas e esquemas utópicos que, ao contrário do que prometem, não só ampliam a força e o papel do poder central e de grupos ideológicos, como conduzem ao caos e à infelicidade pelo ataque aos diferentes modos de vida e de ação individual. A desconfiança com relação à mudança é uma forma de evitar aventuras políticas pessoais ou de um grupo específico que pretendam modificar toda a sociedade, intervindo diretamente na vida de cada indivíduo, para realizá-las sob a justificativa falaciosa de que o fazem em nome do bem comum, ou do coletivo rousseauniano. Mas, apesar de comungarem princípios e valores, as diferenças existem e devem ser respeitadas com uma referência explícita ao conservadorismo que se quer ilustrar num texto ou numa conversação. Obviamente, é lícito criticar o conservadorismo, mas é preciso demonstrar que se conhece o objeto da crítica.

Se você tiver a paciência de assistir essa conversa, num programa adequadamente batizado de Desentendimento, verá como a confusão de que trato neste texto não está restrita a jovens ignorantes que transformam sites, blogs e redes sociais em trincheiras do não-pensamento. No programa, dois professores universtários debatem sobre esquerda e direita cada qual a representar seu grupo ideológico. Marcos Nobre, professor da Unicamp e Pesquisador do CEBRAP, faz questão de rejeitar os princípios e objetivos da esquerda tradicional, mas não explica qual é extatamente a sua esquerda (pelo menos foi honesto ao recusar-se a vincular a direita em debate com regimes facistas e totalitários). Luiz Felipe Pondé, professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado), se apresenta como liberal-conservador e embora apresente posições conservadoras pertinentes, não as aprofunda, e, no caso do liberalismo, não vai além de dizer que o seu se restringe à liberdade de mercado.

Nos comentários finais, Nobre, o representante da esquerda, fecha sua participação dizendo que discorda do que fora dito por Pondé, o representante da direita, porque não reconhece na crítica exposta aquilo que ele entende por esquerda e o que esta representa. Qual a esquerda que ele diz representar? Aquela que, num ambiente democrático, luta pelo desenvolvimento da sociedade, pela regulação dos mercados e pela instituição de políticas sociais. Ao retorquir, Pondé só alarga a dimensão do problema da definição dos conceitos: “isso para mim não é esquerda”.

Agora me diga: quantos desentendimentos você já viu, leu ou participou no qual os interlocutores inicialmente esclareceram fundamentadamente suas posições e escolhas teóricas para só depois tratarem do objeto principal proposto? Se teve algum dia essa sorte poderá compreender a dimensão do problema que trago à discussão. Se é um dos milhares de desafortunados que ainda não conseguiu ter acesso a uma conversação estimulante, poderá começar a exigir essa postura respeitosa com os conceitos, com o tema, com o adversário, com a audiência e, principalmente, com a busca pela verdade.

Publicado no site Ordem Livre.

Bruno Garschagen é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e Universidade de Oxford.

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