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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O anti-semitismo na Rússia

Mídia Sem Máscara

O primeiro pogrom do século XX teve um grande impacto não apenas no mundo judaico – abalando os judeus dentro e fora da Rússia – mas provocou, também, a ira do mundo civilizado, que se voltou contra a Rússia czarista.

A cidade de Kishinev, no sul da Rússia, entrou para a história judaica há cem anos (1) quando um sangrento pogrom*, incentivado e provavelmente organizado pelas autoridades russas, foi lançado sobre a população judaica da cidade.

Em abril de 1903, turbas enfurecidas assassinaram brutalmente 45 judeus e feriram outros 700, destruindo centenas de casas e lojas. Mulheres e crianças foram vítimas das mais horrendas violências. O nome Kishinev ficou desde então associado a uma indizível selvageria. Esse primeiro pogrom do século XX mudou o curso da história dos judeus – pois a retomada da violência anti-judaica na Rússia czarista levou milhares deles a emigrar para a Terra de Israel e para os Estados Unidos.

Os antecedentes

Na Rússia czarista, o mau tratamento dos judeus era sistêmico. Desde seus primórdios, o regime dos czares encarou os judeus com hostilidade implacável. Enquanto outras autocracias, como a Áustria e mesmo Roma, sempre tiveram atitude ambivalente em relação aos judeus – às vezes, protegendo-os e usando-os; em outras, perseguindo-os – os russos sempre trataram os judeus como estrangeiros não aceitos. No final do século XIX e início do século XX, em todo o território russo o anti-semitismo era uma política oficialmente sancionada pelo governo, algo que não acontecia na Europa Central e Ocidental e muito menos nos Estados Unidos.

Nesse período o anti-semitismo russo assumiu inúmeras formas, desde a organização de pogroms até a falsificação e publicação dos famigerados "Protocolos dos Sábios de Sião". A violência era abertamente instigada pelo governo, que passou a manipular o sentimento anti-judaico das massas russas com dois objetivos. O primeiro era tentar reduzir a população judaica da forma mais rápida e drástica possível. O segundo, canalizar a insatisfação popular, especialmente entre os camponeses, alimentando o seu ódio contra os judeus para, assim, controlar uma onda revolucionária muito mais abrangente, que acabaria, em 1917, por destruir o regime czarista. É interessante notar que o termo pogrom, usado praticamente em todas as línguas para definir os ataques a judeus ou a suas propriedades, é uma palavra russa que significa "tempestade" ou "destruição".

Durante todo o século XIX, acumulou-se na Rússia uma enorme massa de legislação discriminatória contra os judeus. Somente durante o reinado do czar Alexandre II, quando a Rússia teve um grande progresso econômico, os judeus russos conseguiram ter algumas regalias. Foi uma fase relativamente liberalizada, que terminou abruptamente em 1881, quando Alexandre II foi assassinado por revolucionários. A partir de sua morte, a vida dos judeus na Rússia piorou consideravelmente.

Ao assumir o poder, o novo czar Alexandre III entregou as rédeas do governo a Pobedonostzev, um reacionário nacionalista, procurador do Santo Sínodo da Igreja Ortodoxa. Com sua subida ao poder, suas "idéias" sobre os judeus russos converteram-se em política oficial do governo. Pobedonostzev arquitetara uma fórmula para se livrar dos milhões de judeus do Império Russo: "um terço da população judaica seria expulsa; a outra terça parte morreria exterminada pela fome, e a última seria absorvida por força de conversão".

Sob a proteção de chauvinistas "eslavófilos" – cujo credo centrava-se no conceito da "Santa Madre Rússia" e da "Rússia para os russos", da Igreja Ortodoxa – que deu sua aprovação religiosa – e do governo – que agia nos bastidores – o anti-semitismo tornou-se um movimento bem organizado, "respeitável" e temido por todos.

Um claro exemplo da política oficial referente aos judeus do Império Russo foram os pogroms de 1881-1882. A onda de violência teve início seis semanas após a morte do czar Alexandre II, por ocasião da Páscoa, no sul da Ucrânia. Os pogroms duraram dois anos, espalhando terror e derramamento de sangue por cerca de 150 localidades. Enquanto matavam os judeus e suas propriedades eram saqueadas e destruídas, a polícia e o exército eram mantidos afastados, por vários dias, antes de receber ordens para intervir. Segundo vários historiadores, inclusive Paul Johnson em sua "História dos Judeus", os pogroms "foram iniciados, acobertados ou organizados pelo ministro do Interior". Na época, o governo russo negou qualquer responsabilidade, mas não há dúvida de que se não há "provas" de uma participação direta do governo, houve, no mínimo, sua conivência, tendo em vista o alastramento rápido e simultâneo dos pogroms por toda a Rússia. Os oficiais do governo cinicamente os justificavam, afirmando que os pogroms eram "culpa" dos próprios judeus, já que não passavam de "uma explosão de raiva dos camponeses contra a população judaica".

O choque emocional provocado pelos pogroms de 1881-82 teve várias conseqüências. Entre outras, acelerou a formação do movimento sionista e a fuga de judeus russos para o Ocidente. Calcula-se que entre 1881 e 1918, cerca de 1 milhão e 300 mil judeus deixaram o Império Russo.

As violentas ocorrências geraram uma onda de protestos públicos internacionais, desencadeada pela França, Inglaterra e Estados Unidos. Mas, apesar de toda essa pressão, em 1882 o governo czarista deu mais um passo contra a população judaica, elaborando uma nova política que perdurou até a Revolução de 1917. O novo conjunto de leis, intitulado as "Leis de Maio", era extremamente discriminatório e cruel, restringindo ainda mais a liberdade de movimento e de residência dos judeus. Tornava extremamente difícil, se não impossível, seu acesso à educação e à atividade econômica. Os judeus russos não podiam comprar terras, ter cargos públicos, ser professores universitários. Pressionada de todos os lados, a grande maioria deles vivia em condições críticas.

Desde que assumiu o poder, em 1894, até sua queda, em 1918, o czar Nicolau II – conhecido na história judaica como o "czar dos pogroms" – adotou, como seus predecessores, a tão arraigada política de atribuir aos judeus a culpa por todos os males. Usava-os para "distrair" as massas russas da miséria e opressão em que viviam. Em todas as cidades eram distribuídos panfletos e jornais que incitavam à violência, impressos em sua grande maioria nas tipografias do governo. Para se ter uma idéia do nível a que chegou a barbárie, no período de 1903 a 1907, quando a Rússia passava internamente por grande instabilidade política, ocorreram 691 pogroms que deixaram milhares de vítimas. O primeiro deles aconteceu justamente em Kishinev.

Kishinev

Durante o século XIX, Kishinev era a capital da Bessarábia. Atualmente é a capital da República da Moldávia, parte da ex-União Soviética. Sob o domínio russo, a cidade tornara-se um ativo centro comercial e industrial, atraindo judeus de outras partes da Rússia, em busca de oportunidades e trabalho. Apesar de todas as restrições econômicas impostas em finais do século XIX, a comunidade judaica de Kishinev florescera. Calcula-se que, em 1903, aproximadamente 60.000 judeus vivessem em Kishinev. Havia 16 escolas judaicas, com 2.100 alunos, e 70 sinagogas. Mas os trágicos eventos que ocorreram na Páscoa de 1903, nessa cidade, mudaram para sempre a vida deles.

Reinava, na época, uma grande tensão na Rússia e, na tentativa de aliviá-la, o governo czarista tentou dirigir as atenções da população contra os judeus. Como nas ocorrências anteriores, acredita-se que agentes do Ministério do Interior e funcionários do alto escalão do governo estivessem envolvidos na organização do primeiro pogrom do século XX.

Em fevereiro de 1903 foi encontrado morto, em Kishinev, um menino cristão, Michael Ribalenko. Embora fosse evidente que o menino havia sido morto por um parente – como foi provado mais tarde – espalhou-se na cidade o boato de que ele fora assassinado pelos judeus. Segundo algumas fontes, o chefe da polícia local teria sido o autor do boato. De qualquer modo, teve importante participação no desenrolar dos acontecimentos.

Durante meses, uma campanha anti-semita orquestrada pelo diretor do jornal Bessarabets incitava continuamente a população contra os judeus. A cidade fervia de ódio quando outro acontecimento foi o estopim para o início da violência. Uma jovem cristã, paciente do Hospital Israelita de Kishinev, cometeu suicídio. Mais uma vez o jornal Bessarabets imputou aos judeus a culpa por essa morte. (Tempos depois encontrou-se o verdadeiro assassino do menino Michael, assim como também provou-se que a morte da moça não tinha relação alguma com os judeus. Mas isso só veio a público após a violência ter tomado conta da cidade).

Na véspera da Páscoa de 1903, turbas enfurecidas assaltaram Kishinev. Os judeus tentaram inutilmente apelar às autoridades locais. Sabiam que estas poderiam conter imediatamente a violência, pois havia 5 mil soldados estacionados na cidade. Mas o vice-governador se recusou a intervir, afirmando que só poderia tomar qualquer medida se recebesse ordens diretas do ministro do Interior. Acredita-se que o próprio vice-governador fosse um dos incentivadores do pogrom e que o ministro do Interior lhe dera ordens de não parar a violência. Quando "as instruções" finalmente chegaram e as tropas foram enviadas às ruas, sua presença bastou para acabar com os desmandos.

O pogrom durou três dias, deixando em seu rastro conseqüências estarrecedoras: 45 judeus morreram e 700 ficaram feridos, 92 dos quais em estado grave. Mulheres e crianças sofreram violências brutais. De acordo com os dados oficiais, mais de 800 casas foram pilhadas e destruídas, 2.000 famílias ficaram sem teto e 600 lojas foram saqueadas. Embora pareça que a reação dos judeus foi de total passividade, sabe-se que houve tentativas de auto-defesa. Todas, porém, fracassaram. As autoridades, ao invés de parar a violência, desarmaram os poucos judeus que resistiam.

O pogrom de Kishinev recebeu muita atenção internacional. O The New York Times escreveu, na ocasião:

É impossível contabilizar-se a quantidade enorme de propriedades destruídas em poucas horas, os aplausos ao tumulto desenfreado, os gritos lancinantes das vítimas tomando conta do espaço. Onde quer que se encontrasse um judeu, ele era selvagemente espancado até desfalecer. Um deles foi arrastado de um bonde e espancado até que a turba pensasse tê-lo matado. O ar estava tomado por penas e roupa de cama estraçalhadas. Todos os lares judeus foram invadidos e seus infelizes moradores, aterrorizados, tentavam esconder-se nos porões e sob os telhados. O populacho não poupou nem a sinagoga e, profanando a mais importante casa de orações, violou os Pergaminhos da Lei. A conduta dos inteligentes cristãos foi vergonhosa. Não fizeram tentativa alguma de conter o desvario. Simplesmente ficaram a olhar e a desfrutar da brincadeira ignominiosa. No terceiro dia, quando foi divulgado que as tropas tinham recebido ordens de atirar, os baderneiros contiveram-se. Apesar do clamor mundial, apenas dois indivíduos foram sentenciados, com penas de cinco e sete anos, enquanto vinte e dois outros receberam penas de um e dois anos.

Os impactos do pogrom

O primeiro pogrom do século XX teve um grande impacto não apenas no mundo judaico – abalando os judeus dentro e fora da Rússia – mas provocou, também, a ira do mundo civilizado, que se voltou contra a Rússia czarista. Intelectuais russos, como Tolstoi e Gorki, manifestaram abertamente sua repulsa, declarando que a sociedade inteira era tão culpada da desgraça e dos horrores de Kishinev quanto os próprios assassinos.

Os judeus, chocados com os acontecimentos, reagiram de várias formas. As organizações judaicas internacionais se movimentaram rapidamente para levar ajuda às vítimas. Um importante manifesto contra a passividade judaica foi redigido por Ahad Ha-Am e assinado por escritores como H. C. Bialik, Simon Dubnow, Mordecai Ben-Ami. O manifesto afirmava que era "degradante ver 5 milhões de pessoas oferecendo o seu pescoço para serem abatidas como gado, sem ao menos tentar defender sua vida com suas próprias mãos". O escritor Chaim Nachman Bialik, enviado à cidade pelo Congresso Judaico de Odessa para verificar o que ocorrera, escreveu um poema que provocou uma profunda reação. Em "Na cidade da matança", Bialik protesta amargamente contra os "filhos dos macabeus,... que se esconderam e silenciosamente assistiram suas mães, esposas e filhas serem violentadas".

Em resposta aos ataques, foram formados grupos judaicos de auto-defesa, organizados por operários, estudantes, membros do Bund e de outros grupos sionistas. O pogrom de Kishinev provocou o fortalecimento das aspirações sionistas no seio da comunidade judaica russa. A difícil situação do judaísmo russo, que Herzl testemunhou pessoalmente durante sua visita à região, causou-lhe tamanha preocupação que no 6º Congresso Sionista (1903) ele propôs o plano britânico de usar Uganda como um refúgio temporário para os judeus da Rússia.

A brutalidade dos acontecimentos foi de tal magnitude que milhares de judeus que viviam sob o jugo do czar decidiram abandonar o Leste Europeu. Muitos foram para os Estados Unidos, onde criaram vibrantes comunidades e puderam desenvolver o seu talento e sua criatividade. E muitos outros foram para Eretz Israel, criando um importante núcleo que daria origem ao futuro Estado de Israel, soberano entre as nações.

Notas:

* - Pogrom: movimento popular de violência contra os judeus.

1 - Nota do editor: extraído da revista Morashá, que publicou o artigo em março de 2003, por ocasião do centenário do pogrom de Kishinev. Divulgado pelo site Beth-Shalom.



Referências:

"Korolenko Describes the Kishinev Pogrom of 1903 from "Kishineff: The Medieval Outbreak Against the Jews", in "The Great Events by Famous Historians" pp. 35-49.

Chronicle of Jewish History.

Paul Johnson, História dos Judeus, Editora Imago.

Nahum Sokolow, editor do jornal "Hazefira" (Varsóvia), relatando os acontecimentos após o pogrom de Kishinev em 1903.

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