O que é uma vítima do terrorismo?
Mídia Sem Máscara
| 21 Setembro 2011
Artigos - Terrorismo
Como é um país que desde a sua criação tem vivido em guerra, senão desde antes, Israel é o caso oposto ao russo: tem a legislação mais avançada do mundo em defesa das vítimas do terrorismo.
Oficialmente, na Arábia Saudita, “não há terroristas nem atentados”.
O que é uma vítima do terrorismo? Há Estados no mundo que não sabem como responder isso. Que não querem responder isso. Anneta Gadieva sobreviveu ao feroz ataque islamista de Beslán, Ossétia do Norte (Rússia). Em 3 de setembro de 2004, 32 comandos armados assaltaram um colégio. O testemunho de Gadieva, ante as 450 pessoas que assistiram ao VII Congresso Internacional de Vítimas do Terrorismo, reunido em Paris, de 14 a 17 de setembro de 2011, foi um dos mais dilacerantes. Ela perdeu Melina em Beslán, seu bebê de um ano de idade. O governo russo nunca quis reconhecer, nem ajudar essas vítimas. Moscou não sabe o que é uma vítima do terrorismo.
Irina Khalay é outra vítima russa que falou em Paris. O atentado de Volgodonsk ocorreu em 16 de setembro de 1999, quando um edifício de apartamentos explodiu por um carro-bomba. Khalay expressou a mesma decepção de Gadieva: ninguém escuta as vítimas na Rússia. Estas se sentem abandonadas e sem nenhum reconhecimento. Sem nenhuma compaixão. Não há sequer atenção médica para as crianças que foram feridas. Não os consideram como vítimas, senão como “pessoas acidentadas”.
O governo russo foi incapaz de tirar lições do que ocorreu em Beslán e não sabe como impedir uma nova tragédia similar: “Os atacantes nos amontoaram em um ginásio. Éramos 1.127 pessoas. A maioria era de jovens e crianças. Trataram-nos como bestas. Durante as 53 horas intermináveis não tivemos nem água nem comida. Algumas crianças bebiam suas urinas. O calor era horrível. Alguns reféns foram torturados. Outros receberam disparos pelas costas quando tentaram escapar. Pedi que eles deixassem minha bebê sair, mas não aceitaram”, contou Gadieva. Ao final do assalto, o balanço não podia ser pior: 370 pessoas mortas, 186 das quais eram crianças e 700 feridos por causa dos tiros, das explosões e dos incêndios. Muitos cadáveres ficaram irreconhecíveis.
Apesar do ódio contra os terroristas e da fúria ante autoridades tão irresponsáveis e duras, os sobreviventes escolheram a via do direito, explicaram Anneta e Irina. As vítimas exigem que a justiça abra investigações verdadeiras. As perguntas são muitas. Por que, por exemplo, os terroristas de Beslán, procurados pela polícia e condenados, estavam em liberdade? Como puderam chegar com suas armas e explosivos até a escola? Como os terroristas puderam instalar suas bombas em vários edifícios civis na série de atentados em 1999? Até hoje as vítimas não sabem de nada. E pior, não se quer ouvi-las. O medo de ouvir as vítimas do terrorismo, o medo de ouvir a verdade que elas carregam é enorme, na Rússia de Putin e Medvedev. O único apoio que elas têm vem da comunidade internacional. As vítimas dos outros atentados na Rússia estão na mesma situação. Elas esperam, entretanto, que algum dia Moscou lhes outorgue o estatuto de vítimas.
Como é um país que desde a sua criação tem vivido em guerra, senão desde antes, Israel é o caso oposto ao russo: tem a legislação mais avançada do mundo em defesa das vítimas do terrorismo. Estas sim, são reconhecidas e apoiadas, social e oficialmente, como faz este país com todos os seus soldados. Oriella Bliah, diretora de One Family Fund, explicou que Israel cobre os gastos das vítimas dos atentados ocorridos nesse país, quer sejam israelitas ou não, e até dos turistas. As crianças que fiquem órfãs são nomeadas pupilos da nação e são protegidas e educadas. Israel paga até as cerimônias das vítimas que sobrevivem, como o casamento, etc.
A mobilização cidadã e institucional na Espanha, após os atentados islâmicos do 11 de março de 2004 em Madri, é um exemplo para o mundo. Esther Saenz estava em um dos quatro vagões que explodiram. Foi ferida gravemente porém sobreviveu, pois recebeu atenção médica rapidamente. Sua recuperação física e espiritual foi muito difícil. O problema é a investigação oficial, disse ela. “Ainda não se sabe quem pôs as bombas e quem pensou e decidiu isso. Os trens e outras provas foram destruídas”, lamentou-se. Dois outros oradores, Juan de Dios Dávila, irmão de uma vítima do atentado do ETA em Madri, em 21 de junho de 1993, e Begonia Elorza García de Vicuña, mãe de outra vítima de um atentado do ETA em Vitoria, em 22 de fevereiro de 2000, explicaram a outra preocupação das vítimas espanholas do terrorismo: há um retorno do ramo político etarra, graças a uma sentença iníqua da muito politizada Corte Constitucional espanhola que permitiu à coalizão extremista Bildu participar das eleições locais de maio passado, onde esta ganhou postos em inúmeras câmaras municipais. Entretanto, o Tribunal Supremo havia vetado a Bildu, por tratar-se de uma recauchutagem da ilegalizada Batasuna-ETA. O governo de Zapatero foi favorável à legalização de Bildu e esta governa hoje várias localidades. Por isso, o medo entre as vítimas do ETA é enorme no país basco espanhol.
Três vítimas norte-americanas do 11 de setembro de 2001 intervieram. Em Nova York houve ajuda direta e rápida às vítimas. Porém, as famílias continuam tendo problemas de atenção médica, sobretudo para alguns membros das equipes de resgate que desenvolveram enfermidades após esse trabalho. Nancy Aronson, que perdeu um familiar nesses atentados, falou da criação de associações de vítimas e dos esforços por se fazer ouvir ante a comissão oficial de investigação do 11 de setembro, nem sempre com êxito.
A advogada Isabelle Teste assinalou que a França reconhece a qualidade de vítima do terrorismo e que abre uma investigação penal após cada atentado. “Há um esforço na França para buscar a verdade desses fatos”, acrescentou. A vítima pode estimular ou não o processo, pois “há audiências que são devastadoras para elas pela confrontação com seus verdugos”. Em todo caso, lembrou, “há um fundo de garantias para todas as vítimas do terrorismo, e nenhuma vítima deve renunciar à indenização”.
O caso de uma família francesa da região muçulmana, mostra até onde pode chegar a ignomínia de certos países ante o terrorismo. Zakia Bonnet, seu esposo e seu filho de 15 anos foram metralhados por terroristas em uma rodovia não longe de Medina, na Arábia Saudita. Os três iam em peregrinação para a Meca. O esposo morreu no ato porém o filho, que recebeu quatro balas, ficou agonizando por seis horas. No hospital ninguém quis atendê-lo e ele morreu ante os olhos impotentes de sua mãe. A resposta de Riad foi que ela tinha 36 horas para sair do país pois, oficialmente, na Arábia Saudita, “não há terroristas nem atentados”. Seu testemunho estremeceu o auditório.
No último dia do congresso houve três discursos de encerramento. O primeiro esteve a cargo de Carlos Dívar Blanco, presidente do Tribunal Supremo espanhol. O segundo correspondeu ao ex-ministro francês e Defensor de Direitos Humanos, Dominique Baudis. O terceiro foi o de François Zimeray, embaixador francês para os Direitos Humanos. Sem esquecer um ato muito simbólico no qual outras 16 vítimas leram, cada uma, um parágrafo do Manifesto das Vítimas do Terrorismo, em quinze línguas diferentes. Um desses parágrafos foi lido pelo tenente Malagón, ex-refém das FARC resgatado pela Operação Xeque, em 2 de julho de 2008.
O balanço do congresso é impressionante: 450 pessoas vieram a Paris para ouvir as vítimas de 35 países. Os testemunhos [1] giraram ao redor de 27 atentados terroristas cometidos no mundo, entre 1956 e 2011.
Quando os discursos e os relatos terminaram, ficou entre todos flutuando a confiança ou, inclusive, a certeza de que o congresso havia culminado em um esplêndido consenso, pois certos conceitos muito precisos habitaram quase todas as intervenções. Essas convicções foram exemplarmente resumidas pelo jurista Carlos Dívar Blanco em seu discurso final. Um resumo apertado de suas idéias poderia ser este: “O terrorismo é um mal, é intrinsecamente perverso. Deve-se combatê-lo até erradicá-lo totalmente. Toda aliança para ou com o terrorismo é má, em todo o sentido. Não pode haver um Estado de Direito, uma civilização jurídica, se não há estruturas eficazes que combatam e condenem o terrorismo. Essa luta deve estar fundada sempre sobre princípios morais, universais e éticos.
Justiça quer dizer, dar a cada um o seu. Ao terrorista, a sanção: ele tem que estar em seu lugar, na prisão, para que a sociedade seja protegida. Em troca, às vítimas deve-se oferecer-lhes justiça, quer dizer, reconhecimento e apoio moral e material. As vítimas devem ser postas no coração de todos os membros da sociedade. Só uma sociedade regida por valores humanos, e não só por interesses, é capaz de dizer a verdade e de lutar eficazmente contra o terrorismo. A unidade das vítimas é indispensável.
Todas as sociedades estão ante uma responsabilidade moral e jurídica: não esquecer as vítimas do terrorismo. A luta de anos dessas pessoas contra o terror, contra as seqüelas do terror, contra a radicalização que leva ao terror, é uma bênção para as sociedades, as quais estão expostas, hoje mais do que nunca, à barbárie e à atrocidade dos terroristas. Não podemos admitir pois, que os delinqüentes, os verdugos, não sejam castigados nem que alcancem a impunidade, de direito ou de fato. Permitir isso é incorrer em uma contradição jurídica, metafísica, em um erro que nega o ser humano”.
Nota:
[1] Ver meus dois artigos sobre o VII Congresso de Vítimas do Terrorismo em:
Tradução: Graça Salgueiro
Seja o primeiro a comentar
Postar um comentário