Depois da festa no Cairo
Mídia Sem Máscara
Moisés Rabinovici | 15 Fevereiro 2011
Internacional - Oriente Médio
A rua árabe exala o perfume da Revolta do Jasmim, na Tunísia, que derrubou o tirano Ben Ali e ameaça contagiar Argélia, Líbia, Irã, Síria, Jordânia, Arábia Saudita e outros países da região.
O avião israelense penetrou o espaço aéreo egípcio desarmado, rumo ao Cairo. Logo surgiram dois caças Mig, voando só um pouco mais alto. No ar, a fusão até então impensável: a estrela de David de Israel, azul e branca, e o falcão de Qureish dourado do Egito, lado a lado no céu sem nuvens do deserto do Sinai.
Já perto do Cairo, a voz do presidente Anuar Sadat foi ouvida a bordo do Boeing da El Al. Era um convite para sobrevoarmos as pirâmides de Gize O primeiro-ministro Menachem Begin mandou abrir champanhe para brindar com os jornalistas que o acompanhavam: "Nós é que as construímos" – comentou, e todos riram, e beberam.
Em outra ocasião, em Ismaília, as negociações de paz emperradas, repórteres no hotel Salaam (Paz, em árabe) acordaram com batidas fortes na porta de seus quartos, quase duas da madrugada. Algo acontecia no subsolo. E devíamos correr para lá. Havia começado com uma estonteante dançarina envolta em véus. Ela marcava o tambor com o quadril, tremia o tronco, ondulava os braços, sinuosa como uma serpente. Hipnotizado, o ex-chanceler de Israel, Abba Eban, levantou-se requebrando. Daí a pouco, árabes e israelenses caíam na dança do ventre. Foi o "carnaval da paz", descrevi no Estadão. Não havia acordo ainda, mas os ex-inimigos provaram que podiam tirar as carapaças de crise permanente e confraternizar juntos.
Una frase de Abba Eban, conhecido por "a voz de Israel", por causa de seus lampejos em discussões, sobreviveu à sua morte, em 2002. Pronunciada em Genebra, em 1973, depois da Guerra de Yom Kippur, é repetida ainda hoje: "Os árabes nunca perdem a oportunidade de perder uma oportunidade". Mas Sadat, exceção, aproveitou-a: por isso, foi premiado com o Nobel da Paz junto com Begin, em 1978; assinou o acordo com Israel em 1979, na Casa Branca; e foi assassinado em 1981, durante um desfile militar no Cairo, por um tenente do exército que pertencia à Irmandade Muçulmana (a seu lado, Hosni Mubarak escapou).
Menachem Begin morreu em 1992, deprimido com os desdobramentos da guerra do Líbano que iniciou com seu ministro da Defesa, Ariel Sharon, em 1982. Outro mártir e Nobel da Paz, Yitzhak Rabin, foi baleado três vezes por um fanático religioso judeu, em 1995, na praça dos Reis de Israel, em Tel-Aviv, depois de uma multidão entoar uma canção de paz.
Essas e outras lembranças dos meus oito anos no Oriente Médio brotaram com esse Egito desconhecido gestado em 18 dias na praça Tahrir. "Estou sonhando? Tenho medo de estar sonhando "– dizia às lágrimas o âncora de TV egípcio Amr Nassef, ao vivo e agradecido: "Allahu Akbar (Alá é Grande), o faraó acabou".
Mais que um sonho, essa inédita realidade, a rua árabe exigindo seus direitos básicos, exala o perfume da Revolta do Jasmim na Tunísia, que extraiu de 23 anos de poder o tirano Zine El-Abidini Ben Ali, e ameaça contagiar a Argélia, a Líbia, o Irã, Síria, Jordânia, Arábia Saudita, Marrocos, Mauritânia, Sudão, Kuwait, Oman e Emirados, derrubando emires, príncipes, reis, ditadores e aiatolás. Uma rebelião liderada por jovens que querem liberdade, emprego, democracia e melhores condições de vida.
Por enquanto, nada parecido com a onda xiita que inundou de fervor o Oriente Médio em 1979, quando Khomeini destronou o xá Reza Pahlevi, no Irã. Agora é a internet que leva ao paraíso, o mundo apenas a um clique, e não à morte como homem-bomba no front antissionista ou antiamericano.
A trajetória da paz entre Israel/Egito e Jordânia/Israel morre na praça Tahrir? Será lamentável, se verdadeiro. Muralhas de ódio vencidas, crises, tragédias e guerras superadas, e um faraó derrubado arrasta consigo todas as conquistas de paz para a mumificação da história.
Ainda é cedo para avistar um desfecho. O ex-ministro da Defesa israelense Benjamin Ben Eliezer conversou com seu amigo Hosni Mubarak , ao telefone, por 20 minutos: "Ele falou sobre uma bola de neve rolando que não poupará uma só nação árabe do Oriente Médio e do Norte da África". E profetizou, na Terra Santa dos profetas: "Não me surpreenderei se o futuro trouxer mais extremismo e radicalismo islâmico, mais distúrbios e reviravoltas dramáticas em nossa região".
Mas há sinais animadores também. O comando militar que assumiu o poder egípcio assegurou à comunidade internacional que não há plano de romper o tratado de paz com Israel. E a Irmandade Muçulmana, a única força suficientemente organizada no Egito, mas antipaz, anti-Israel e antiamericana, comunicou que "não está em busca de ganhos pessoais, não apresentará candidato à Presidência e nem pensa em formar maioria no Parlamento". Para conhecedores, soa como blefe, principalmente a conclusão: "Apoiamos com apreço o rumo que o Alto Conselho Militar está tomando para transferir o poder pacificamente a um governo civil, como é a vontade do povo".
O Egito foi o berço do mundo árabe, inventou a geometria, descobriu a astronomia e criou o papel; para onde pender, outros países irmãos o seguirão, embora para a paz com Israel só o acompanhou a Jordânia, em 1994.
O escritor e negociador dos EUA para a paz, Aaron David Miller, diz que "as grandes potências são incapazes de microgerenciar os assuntos internos de pequenas tribos", baseado na experiência dos últimos oito anos no Afeganistão, Iraque e Irã, e nos anteriores 800 anos no Oriente Médio. "E vamos ser claros: Hosni Mubarak não se compara a Saddam Hussein.
Não é um sociopata ou assassino em massa. Na verdade, até o mês passado, posso garantir, um grande número de funcionários do governo americano, incluindo o presidente e a secretária de Estado, o cortejavam em Washington ou no Cairo".
O almirante Mike Mullen, presidente do Estado-Maior conjunto das forças armadas norte-americanas, desembarcou ontem na Jordânia. Sua missão: acalmar o rei Abdullah, que já trocou seu governo para aplacar as primeiras manifestações de contágio do Egito e Tunísia. Hoje ele faz escala no gabinete do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, em Jerusalém, antes de voltar para Washington.
Depois da festa na praça Tahrir, paira uma única questão nos EUA, Israel, Egito, Gaza e no Líbano do Hezbollah: e agora?
Moisés Rabinovici foi correspondente no Oriente Médio durante oito anos
Fonte: http://www.dcomercio.com.br/materia.aspx?id=62261&canal=14
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