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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Qual vacas para touro

Mídia Sem Máscara

Um exame de ingresso nos cursos de terceiro grau, com extensão nacional, é um devaneio autoritário, uma coisa de porte descomunal, monstruosa no aspecto e, por óbvio, descomedido na dimensão de seus erros.

É muito provável que o leitor desconheça o fato relatado na edição de Zero Hora do dia 2 deste mês, em artigo com o título "Mamãe, passei em Medicina". O autor, professor de matemática e engenheiro pelo ITA foi protagonista da experiência que conta. Chama-se Daniel Lavouras e submeteu-se às provas do ENEM deste ano, sendo qualificado para ingresso no prestigiado e disputado curso de Medicina da Faculdade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.

Até aí nada de mais. Afinal, supõe-se que um professor de matemática, engenheiro aeronáutico, seja uma pessoa com preparação escolar e conhecimentos bem superior à media dos concorrentes. Acontece que ele se confessa, no artigo, absolutamente ignorante nos principais conteúdos com relevo para um curso de Medicina. Transcrevo-o: "Nunca entendi a mitose e a meiose. Não sei a diferença entre eucariontes e procariontes, Darwin, Mendel e seus amigos não me são próximos. Tudo que sei de cromossomos e DNA é o que leio em jornais e revistas. (...) 'Chutei' com precisão? Não, ao contrário, errei praticamente todas as questões de Ciências Biológicas. Ah, em compensação eu tive o extremo mérito de entender que a foto de um jogador parado fora da quadra com uma bola de vôlei significa que ele vai sacar e também percebi a foto do Mr. Bean no quadro da Mona Lisa. É sim, eu acertei estas! (e para todos que ainda não conhecem a prova do Enem, fica o convite para que o façam, visitem o site do Inep).

O professor não vai cursar Medicina, claro. Sua experiência e o que escreveu bradam contra o absurdo de um exame vestibular nacional que não distingue alhos de bugalhos. E tampouco distingue o curso de Economia do de Artes Cênicas, ou o curso de Publicidade do de Engenharia de Minas. E assim, alguém que erra quase todas as questões de Ciências Biológicas habilita-se a cursar uma das melhores faculdades de Medicina do país.

O ENEM não é apenas um recordista em trapalhadas de grande porte. Ele é um mal em si mesmo. E é, também, sintoma específico, no campo da Educação, de dois males genéricos que afetam o Brasil: o centralismo e a ruptura com os fundamentos do sistema federativo. Estamos sendo cozinhados como sapos, pelo gradual aquecimento da água da panela, num modelo que privilegia, em tudo e para tudo, aquilo que é nacional e federal. Adotamos, cada vez mais, sistemas centralizados. Brasília deixou de ser tão-somente a capital do país. Ela se tornou a única cabeça pensante, o caixa único, a sede dos sistemas únicos e o ponto de convergência, pela via fiscal, de 23% do nosso PIB. Tamanha concentração de poder e dinheiro transformou a antiga cidade dos candangos no município brasileiro com mais alto Índice de Desenvolvimento Humano. E para ali convergem prerrogativas que aviltam a Federação, transformando estados e municípios, ora em pedintes, ora em agraciados com as migalhas que caem de sua mesa.

Pois o ENEM é filho desse sistema. Nasceu portador do defeito genético que herdou do papai, o enganoso federalismo brasileiro, no qual a União, cada vez mais, vai dispondo sobre tudo e sobre todos, absorvendo as autonomias ainda residuais na nossa vida social. Um exame de ingresso nos cursos de terceiro grau, com extensão nacional, é um devaneio autoritário, uma coisa de porte descomunal, monstruosa no aspecto e, por óbvio, descomedido na dimensão de seus erros.

É desanimadora, contudo, a bovina docilidade com que instituições de ensino superior, de tanta importância na formação da inteligência nacional, se entregam a esse sistema qual vacas para touro. Cedem autonomia e aceitam sua própria degradação. Em troca de um prato de lentilhas. Lentilhas federais, claro.

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