A fonte da ordem
Mídia Sem Máscara
| 19 Fevereiro 2010
Artigos - Conservadorismo
A fraqueza teórica dos liberais, mostrada pelo artigo do Olavo, é a causa do seu fracasso histórico na política. Devo dizer que lamento esse fracasso, porque há muito de verdade na filosofia política liberal, especialmente no que concerne à condução das questões econômicas e no cultivo da liberdade como valor em si.
O magnífico artigo de Olavo de Carvalho (Liberdade e ordem), publicado originalmente no jornal Diário do Comércio, de São Paulo, colocou questões substantivas para debate. Um olhar na história da filosofia política no Ocidente nos últimos cinco séculos vai mostrar que algo de muito errado na esfera política andou acontecendo. Não apenas pelas múltiplas rebeliões e morticínios, mas sobretudo pelo duelo de idéias que ocorreu e continua a ocorrer. Novas idéias erradas substituíram as antigas idéias certas. Desde a Revolução Francesa podemos dizer que as forças da ordem, o Estado, tornaram-se o inimigo de morte de seus próprios cidadãos, pois o Estado foi tomado por uma elite jacobina empenhada em modelar com seus preconceitos a alma humana. O Estado-predador, o grande Leviatã, o devorador de homens teve no século XX um apogeu, que poderá ser superado no século em curso se a humanidade não construir defesas contra sua capacidade de destruição.
O duelo entre liberais e conservadores está na agenda porque duas visões da história e da filosofia política aqui se enfrentam para representar a verdade da alma. Onde estará a verdade? Olavo bem apontou uma das fragilidades teóricas exponenciais dos liberais, que elegeram, desde Hobbes, a liberdade como princípio. Com Locke será eleita a propriedade. O que se viu é que as boas intenções dos liberais naufragaram no decurso histórico. O século XX foi o coveiro do liberalismo clássico não apenas no âmbito da condução dos negócios do Estado, mas também no plano teórico. As idéias de Locke hoje não passam de reminiscências nas cabeças de uns pouco intelectuais que estão situados bem longe do poder, sem chance de voltar a exercê-lo. Mesmo a liberdade econômica é hoje bandeira de economistas influentes que têm em Bentham seu inspirador, e não em Locke, como é exemplo a Escola de Chicago e seu consequencialismo ético.
A fraqueza teórica dos liberais, mostrada pelo artigo do Olavo, é a causa do seu fracasso histórico na política. Devo dizer que lamento esse fracasso, porque há muito de verdade na filosofia política liberal, especialmente no que concerne à condução das questões econômicas e no cultivo da liberdade como valor em si. São duas descobertas que engrandeceram o viver humano.
Mas o ponto central está em como é constituída a ordem, o fator cronológico e lógico que precede a criação do campo da liberdade política. Olavo escreveu que "...essa liberdade é apenas a margem de manobra deixada ao cidadão dentro da rede de relações determinada por uma ordem jurídica estabelecida. O princípio aí fundante é, pois, o de 'ordem', não o de "liberdade". Isso basta para demonstrar que a 'liberdade' não é jamais um princípio, mas apenas a decorrência mais ou menos acidental da aplicação de um princípio totalmente diverso".
Essa lição é a mesma que nos deu Michel Villey no seu grande livro FORMAÇÃO DO PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO: "Mas o que é o direito, senão, sobretudo, o pensamento vivo de uma elite organizadora sobre o que deve constituir a ordem?"A questão nos remete diretamente ao problema do direito e do direito natural. Não sem razão Leo Strauss escreveu a obra-prima DIREITO NATURAL E HISTÓRIA exatamente para mostrar o erro teórico liberal desde o nascedouro, desde as primeiras linhas da obra de Hobbes. Para ele, o único antídoto contra os males do totalitarismo é o retorno ao direito natural clássico. A ordem fundante teria que vir de pessoas munidas dos princípios de Platão e de Aristóteles, precisamente por sua superioridade teórica e sua consonância com a verdade da alma.
E quais são esses princípios? Quais as fontes da ordem? A lei natural, acessível ao homem pela verdade revelada e pelo esforço filosófico. Voegelin, ele mesmo autor de uma obra que investigou precisamente esse ponto (ORDEM E HISTÓRIA), escreveu no livro A NOVA CIÊNCIA DA POLÍTICA:
"A abertura da alma foi um acontecimento crucial na história da humanidade porque, com a diferenciação da alma como o sensorium da transcendência, tornaram-se visíveis os padrões críticos e teóricos para a interpretação da existência humana na sociedade, bem como a fonte de sua autoridade. Quando a alma se abriu para a realidade transcendente, encontrou uma fonte de ordem superior à da ordem estabelecida da sociedade, assim como uma verdade em oposição crítica à verdade que a sociedade atingira através do simbolismo de sua própria auto-interpretação. Além do mais, a idéia de um Deus universal como medida da alma aberta teve, como corolário lógico, a idéia de uma comunidade universal da humanidade, além da sociedade civil, através da participação de todos os homens na medida comum, entendida quer como o nous aristotélico, quer como o logos estóico ou cristão. O impacto de tais descobertas pode muito bem toldar o fato de que a nova clareza com respeito à estrutura da realidade não alterava essa estrutura".
Os três autores citados tinham os olhos voltados para as devastadoras experiências totalitárias da primeira metade do século XX. Sabiam que elas podem se repetir, com virulência ainda mais espetacular, em face dos meios de morte à disposição dos Estados. Se uma elite capaz de construir uma ordem justa e segura não estiver no comando dos botões do apocalipse a coisa pode engrossar. Estamos vendo o desenrolar da crise econômica mundial, o esforço do Irã para ter artefatos atômicos, a emergência da China como potência global, ela mesma formada por uma pseudo elite jacobina, completamente hermética à verdade da alma. Se os melhores não estiverem no poder, certamente lá estarão os piores, fato do qual nosso país hoje pode dar um exemplo antológico ao mundo.
A discussão proposta por Olavo de Carvalho de forma nenhuma pode ser desconsiderada, assim como a lição nela contida. É desse duelo teórico que depende a continuidade da civilização.
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