O velho Chico: Buarque não vai além dos clichês em novo romance
Mídia Sem Máscara
| 06 Abril 2009
Artigos - Cultura
A sociedade brasileira que Chico Buarque apresenta foi extraída dos velhos manuais de historiografia e sociologia marxista, escritos pelo pai do autor, por Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. Nada acrescenta a elas, além da linguagem da ficção, mas se trata de uma ficção que não ilumina nenhum aspecto da realidade.
É possível babar (e não chorar) pelo leite derramado? Sim, se o Leite derramado em questão for o romance de Chico Buarque de Hollanda. A imprensa paulista derramou litros de baba e tinta por ocasião do lançamento do livro, em 28 de março. O Caderno 2, de O Estado de S. Paulo, cedeu à obra sua capa e mais quatro páginas encomiásticas. A Ilustrada, da Folha, foi pelo mesmo caminho e a Veja também, embora bem mais parcimoniosa nos elogios.
Há um motivo propriamente literário para tudo isso? Não. Leite derramado não é nenhuma obra-prima. É um texto mediano. Torna-se um acontecimento cultural no país simplesmente pelo fato de ter sido gestado pela testa de Chico Buarque, que é uma unanimidade nos meios acadêmicos e nos meios de comunicação nacional. Meios onde impera a mentalidade esquerdista e um corporativismo desbragado. Vale a pena, portanto, comentar não só o Leite derramado como as críticas que lhe saíram na imprensa – e chorar por ambos.
Leite derramado pretende traçar um panorama da história social do Brasil a partir do discurso de um decadente representante das nossas elites que, centenário e moribundo, estaria a ditar suas memórias para uma enfermeira do hospital onde se encontra. O personagem narrador pretende ser, de fato, uma caricatura do burguês aristocrata brasileiro. Pelos cacoetes pretensiosos e autoritários que seu discurso trai, iriam se revelando as mazelas dessa elite, bem como as que ela impôs ao nosso povo – as classes dominadas, exploradas.
É muito significativo disso o desejo que o narrador, Eulálio d’Assumpção, sente por Balbino, “um preto meio roliço”, filho de um criado da família e que foi seu amigo de infância. Sobre ele, relata Eulálio, no capítulo 4:
“Durante um período, para você ter uma idéia, encasquetei que precisava enrabar o Balbino. Eu estava com dezessete anos, talvez dezoito, o certo é que já conhecia mulher, inclusive as francesas. Não tinha, portanto, necessidade daquilo, mas do nada decidi que ia enrabar o Balbino. [...] Só me faltava ousadia para a abordagem decisiva, e cheguei a ensaiar umas conversas de tradição senhorial, direito de primícias, ponderações tão acima do seu entendimento, que ele já cederia sem delongas”.
Ora, essa imagem de o rico querer literalmente – desculpem – foder o pobre fala por si. Eu disse, portanto, que o livro pretende, porque não chega efetivamente a realizar seu objetivo. Desde seu próprio nome, a que o apóstrofe e o pê mudo devem atribuir distinção, antiguidade e nobreza, Eulálio d’Assumpção é a caricatura não da elite, mas de um estereótipo da elite e nada mais do que isso. A sociedade brasileira que Chico Buarque apresenta foi extraída dos velhos manuais de historiografia e sociologia marxista, escritos pelo pai do autor, por Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes. Nada acrescenta a elas, além da linguagem da ficção, mas se trata de uma ficção que não ilumina nenhum aspecto da realidade.
O problema não está em que nossas elites não mereçam críticas e caricaturas. Merecem sim, sem dúvida nenhuma, porém críticas e caricaturas que a espelhem de fato e lancem alguma luz sobre sua alma e sobre a alma do país. É possível ser marxista e fazer uma literatura analítica e penetrante, sem recorrer a clichês sociológicos. Estão aí São Bernardo e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, como evidência disso, mas vamos adiante.
Não se pode deixar de comentar a pretensão machadiana do texto de Chico Buarque que é somente isso: pretensão, pois, em termos de estilo, sua linguagem não consegue atingir a graça e a elegância do autor de Dom Casmurro. E se Matilde, a amada do narrador de Leite derramado, tem, sim, um quê de Capitu e sua relação com Eulálio é análoga à daquela com Bentinho, não há nisso mais do que uma justa homenagem ao bruxo do Cosme Velho. No mais, Chico, por causa de sua sociologia barata, está mais para nossos naturalistas menores, como Adolfo Caminha e Júlio Ribeiro, no sentido de que como eles – e muito ao contrário de Machado – é esquemático e determinista.
Agora, vale a pena passar em revista a crítica recebida por Leite Derramado.
Roberto Schwarz, o autor de As idéias fora do lugar, tem, como se sabe, as idéias fora do tempo... É um frankfurtiano ortodoxo, que muito se orgulha dessa condição. Nem por isso deixa de ser um erudito e, portanto, é impossível que leve o romance de Chico a sério. Quando diz, logo no início de sua resenha, que Leite derramado é “divertido”, faz seu julgamento de valor definitivo.
Não chegará a elogio maior do que esse ao longo de toda a sua análise. Quando muito suas últimas palavras qualificam o romance como uma “soberba lufada de ar fresco” no panorama literário brasileiro de hoje. Ora, trata-se de um meio elogio, no caso um discípulo de Benjamin e Adorno, como Schwarz, para quem a obra de arte deve ser muito mais do que mera diversão. E um meio elogio que só é feito por corporativismo esquerdista, pois o deleite do crítico está no fato de os Assumpção irem, como ele diz, “cumprindo o seu papel de classe dominante, europeizadíssimos e fazendo tudo fora da lei”.
Quanto às críticas de Augusto Massi e de Samuel Titan Jr., ambos da USP, diga-se que elas não têm o mínimo compromisso de ajudar o leitor aprofundar-se na compreensão do romance, compromisso sem o qual a crítica literária não serve para nada. Os dois fazem elucubrações vagamente elogiosas que mais visam a exibir a sensibilidade intelectual e a capacidade de raciocínio deles mesmos do que a abordar seu objeto de análise.
Massi ainda tem o desplante de terminar seu ensaio com um trocadilho alusivo ao título da obra do pai do autor: “Ao revirar pelo avesso ideologias entranhadas fundamente em nossos hábitos cotidianos, talvez ele [Chico] avance rumo às raízes do Brasil”. É uma brincadeirinha cretina que fica no mesmo nível da do redator da Ilustrada, que chamou Chico Buarque de “o bruxo do Leblon”, multiplicando por dez a distância que separa este bairro do Cosme Velho...
Enfim, das críticas que li, prefiro a de Eduardo Gianetti da Fonseca, que dá conta de fazer uma síntese bem feita do romance e de elogiá-lo com mais economia. Gianetti destaca as “soluções felizes de linguagem espalhadas como dádivas pelo texto”. Mas deixa clara a falta “de ao menos um personagem com o qual se possa ter um vínculo de empatia. Os Eulálios senhoriais são calhordas; os Balbinos da estirpe servil [...] e Matilde não tem vida interior”. E arremata com precisão: “A sociologia festeja, mas a filosofia rasteja”. É isso mesmo. Essa é a história da estética marxista.
http://observatoriodepiratininga.blogspot.com
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