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domingo, 24 de maio de 2009

Voto em lista: a aberração que faltava

Mídia Sem Máscara

Depositar nos partidos a força política para eleger os cargos legislativos é atirar para as nuvens o fomento do resto de legitimidade que ainda existia entre nós. A sociedade brasileira já é fraca. Sua participação na política já é uma piada em comparação com outros países. Se aceitarmos que os partidos é quem decidirão as pessoas ocupantes das listas estaremos admitindo que o povo brasileiro já não terá nenhum meio de legitimar candidaturas.

Discute-se no Congresso Nacional a aprovação de projeto que traz em seu bojo o voto em lista para eleições parlamentares. Tal projeto consiste em que o voto não será mais destinado a eleger um candidato individual, mas uma lista com vários candidatos, a ser decidida e aprovada pelos partidos políticos. A pretensão busca cambiar completamente o processo político legislativo nos níveis federal, estadual e municipal. A instituição de tal sistemática configura verdadeira aberração política, conforme veremos.

Em nosso atual sistema eleitoral, ainda que capenga, a fonte da deliberação política sobre cargos legislativos é radicada na sociedade brasileira. Assim, conforme dispõe o art. 1º caput, combinado com o art. 14 da Constituição do Brasil, a cidadania é causa instrumental da democracia constitucional, pois aparece como sendo um conjunto de condições jurídicas e políticas para a participação de pessoas humanas livres e iguais na manifestação efetiva da soberania popular. Assim, a soberania popular está na comunidade política, mas a expressão dessa soberania se instrumentaliza no voto direto, secreto, universal e periódico.

Desde o século XIX, os partidos políticos sempre apareceram como agentes intermediários de representação política, isto é, como canais representativos da sociedade nas instituições políticas, como representações de grupos/âmbitos da sociedade (partidos de elites ou partidos de quadros) ou da coletividade de um modo geral (partidos de massa), segundo a classificação de Maurice Duverger em seu Partidos Políticos.

Assim, o esquadro arquitetônico das democracias constitucionais tem se configurado, ao largo dos dois séculos anteriores, como uma plataforma de diferenciações entre titularidade e exercício do poder. A sociedade política como fonte, os partidos como pontes para o exercício do poder nas instituições estatais, detentoras do exercício.

A representação política demanda, para tal, uma postura de consideração constitucional com relação às diferenciações existentes na sociedade pluralista, tais como fatores de clivagens baseados em ideologias, interesses, opiniões e vontades, fatores esses que podem ser reunidos sob a denominação de opinião pública. Esta aparece como sendo a extração dos aspectos comuns existentes diante das diversidades. Podemos dizer, assim, que a opinião pública é a revelação do consensus na democracia constitucional. É claro que tal consensus não pode ser fabricado, mas deve almejar a expressão daqueles valores correspondentes ao homem, comuns a todos os homens de uma sociedade, bem como os fatores culturais pertencentes a uma sociedade específica e local. O consensus, assim, é a decisão política fundamental, o posicionamento da sociedade sobre certos assuntos relevantes para sua permanência e existência. É o empreendimento público em que a cultura e os valores da sociedade se manifestam acerca de seus aspectos universais e contingentes. É a totalidade decidindo sobre as particularidades. A cidade política dos cidadãos deliberando sobre seus domínios específicos.

Diante disso, a democracia constitucional implica, para sua legitimidade substancial e processual, na definição de um processo político que demonstre a autêntica representação da opinião pública, do consensus. A vox populi, a extração efetiva da decisão política, deve-se ater, pelo menos nas pretensas democracias, o mais próximo possível de uma opinião pública que sintetize a participação da maioria. A deliberação deve ser pressuposto, o consenso deve ser resultado. Robert Dahl, em seu Poliarquia, expõe uma teoria da democracia baseada substancialmente na participação do maior número possível de seres sociais em um sistema adequado para receber a presença deliberativa de grupos intermediários e de cidadãos. Assim, na poliarquia, há um processo político inicialmente aberto, em que os mais variados grupos sociais organizados almejam participar na decisão política sobre a agenda governamental. Nesse sistema, as instituições precisam abrir as portas para o novo, para a inovação no espaço público, papel esse que cabe aos partidos. Os partidos são, assim, agentes efetivos de representação social, bem como canais de participação política. Os partidos são agentes abertos, não fechados. São antes lugares-comuns para que grupos articulem propostas e projetos de caráter público-político. Não meras máquinas eleitorais, nem mesmo máquinas ideológicas, mas canais abertos para representatividade de diversos elementos constitutivos da opinião pública. Os partidos não possuem compromissos com seus estatutos apenas, mas com a opinião pública de um modo geral.

Assim, pode se pensar que o fortalecimento dos partidos traria vantagens para a democracia brasileira, em que o Estado burocrático patrimonialista e seus estamentos dominam a cultura nacional desde o início da república velha, pois trariam uma transferência do poder decisório para a seara participativa dos partidos políticos. No entanto, tal pretensão aparece como utopia em uma sociedade acostumada a depender do Estado para tudo.

O intuito de fortalecimento dos partidos como meio de fortalecimento da sociedade só pode funcionar em dois tipos de sociedades políticas: em sociedades fortes e consensuais, como é o caso da sociedade americana, em que o controle sobre o poder é forte e faz parte daquele sistema cultural e político (pelo menos antes da gangue dos globalistas assumirem o CFR e a Presidência); ou em países com sistemas políticos construídos a partir dos partidos, isto é, em que os partidos são naturalmente meios efetivos de participação política. Nos dois casos, visualizamos democracias em que o povo atua fortemente ou em um estágio- o Estado- ou em outro- os partidos. Em sociedades fracas, em que a organização político-estatal precede a formação social, como é o caso brasileiro, o papel do Estado é fundamental para todos os âmbitos da sociedade, inclusive para a própria cultura, que no caso, é estamental e patrimonialista. No Brasil, portanto, não só a sociedade é fraca, senão também os partidos.

No atual presidencialismo brasileiro a multiplicidade de partidos é a expressão mais pura da irracionalidade na engenharia de nossas instituições. Essa situação é a prova cabal de uma sociedade esquizofrênica, louca e sedenta por poder. Quem consegue chegar ao poder ou "usá-lo", possui lugar ao sol. Quem não consegue, recebe o apelido de "nanico" ou é logo descartado.

Portanto, depositar nos partidos a força política para eleger os cargos legislativos é atirar para as nuvens o fomento do resto de legitimidade que ainda existia entre nós. A sociedade brasileira já é fraca. Sua participação na política já é uma piada em comparação com outros países. Se aceitarmos que os partidos é quem decidirão as pessoas ocupantes das listas estaremos admitindo que o povo brasileiro já não terá nenhum meio de legitimar candidaturas. Poderá um candidato suspeito, sem qualquer legitimidade, assumir qualquer cargo legislativo. Sua vida será um mar de rosas, podendo rir de nossa cara sem ter seu cargo ameaçado.

A tese da votação em lista é uma alternativa fugaz para a democracia: a sociedade brasileira, que já não encontrava muitos meios para controlar o exercício do poder por homens senão mediante eleições, agora nem com isso poderá contar. Os partidos se tornarão máquinas de clientelismo e de barganha por troca de cargos. O nepotismo, a falência institucional, uma democracia por grupos de personagens políticos, enfim, são resultados do que se avizinha para nosso precário sistema político. Dahl tem razão: a poliarquia implica em um sistema aberto. No nosso caso, começaremos a viver uma oligarquia: um mesmo grupo dominará as prévias partidárias, terá controle sobre as listas, se eternizará no poder e não teremos como tirá-los nem mesmo em eleições. Será uma oligarquia institucionalizada. Um sistema fechado. Um grupo de homens (os políticos brasileiros) na mão dos globalistas e da turma do foro de São Paulo. Não haverá mais partidos, mas sim grupos que exercem o mando. Grupos que comandam o processo legislativo e que, em sintonia com o Planalto, aprovam leis para satisfazer barganhas e promessas de receptadores. Nossas instituições legislativas se transformarão em mercados persas, em cartórios para escrituração de contratos de compra e venda: se compra o poder e se vende o país!

Giovanni Sartori, em seu clássico Democrazia: cosa è, expõe duas visões sobre a democracia: a democracia prescritiva e a democracia descritiva, dizendo que a primeira corresponderia ao que a democracia deveria ser, enquanto a segunda diria o que uma democracia de fato é. A primeira, uma poliarquia seletiva. A segunda, uma poliarquia eletiva.

Para o autor, a poliarquia eletiva deveria buscar ser uma poliarquia seletiva, isto é, uma democracia em que o mérito e a deliberação justa deveriam ser pressupostos para a legitimidade do sistema inteiro. Tal é o que não acontecerá no Brasil. Antes pelo contrário. Com o voto em lista estaremos caminhando para um fechamento do sistema político, em que não mais nós, os cidadãos, mas os partidos, ou melhor, os grupos ocuparão o ofício de serem as peças fundamentais da poliarquia eletiva. Aí eu pergunto: que tipo de eleição teremos? Uma poliarquia seletiva ou uma partitocracia eletiva?

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